Obras Completas de Luis de Camões, Tomo II
Play Sample
I.
Em quanto quiz fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de hum suave pensamento
Me fez que seus effeitos escrevesse.
Porém temendo Amor que aviso désse
Minha escriptura a algum juizo isento,
Escureceo-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não dissesse.
Ó vós, que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! quando lerdes
N'hum breve livro casos tão diversos;
(Verdades puras são, e não defeitos)
Entendei que segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.{2}
II.
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por huns termos em si tão concertados,
Que dous mil accidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que Amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia, e pena, ausente.
Tambem, Senhora, do desprêzo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-hei dizendo a menor parte.
Porém para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho, e arte.
III.
Com grandes esperanças ja cantei,
Com que os deoses no Olympo conquistára;
Depois vim a chorar porque cantára,
E agora chóro ja porque chorei.
Se cuido nas passadas que ja dei,
Custa-me esta lembrança só tão cara,
Que a dor de ver as mágoas que passára,
Tenho por a mór mágoa que passei.
Pois logo, se está claro que hum tormento
Dá causa que outro na alma se accrescente,
Ja nunca posso ter contentamento.
Mas esta phantasia se me mente?
Oh ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?{3}
IV.
Despois que quiz Amor que eu só passasse
Quanto mal ja por muitos repartio,
Entregou-me á Fortuna, porque vio
Que não tinha mais mal que em mi mostrasse.
Ella, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que elle só me reduzio,
O que para ninguem se consentio,
Para mim consentio que se inventasse.
Eis-me aqui vou com vário som gritando.
Copioso exemplario para a gente
Que destes dous tyrannos he sujeita;
Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!
V.
Em prisões baixas fui hum tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pezar, t~ee ja quebrado.
Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi miserias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.
Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.
Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizerão de gostos haver medo.{4}
VI.
Illustre e digno ramo dos Menezes,
Aos quaes o providente e largo Ceo
(Que errar não sabe) em dote concedeo,
Rompessem os Maometicos arnezes;
Desprezando a Fortuna e seus revezes,
Ide para onde o Fado vos moveo;
Erguei flammas no mar alto Erythreo,
E sereis nova luz aos Portuguezes.
Opprimi com tão firme e forte peito
O Pirata insolente, que se espante
E trema Taprobana e Gedrosia.
Dai nova causa á côr do Arabo Estreito;
Assi que o Roxo mar, daqui em diante
O seja só com sangue de Turquia.
VII.
No tempo que de amor viver sohia,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flammas variamente ardia.
Que ardesse n'hum só fogo não queria
O Ceo porque tivesse exprimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.
E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co'o pêzo descansou
Por tornar a cansar com mais alento.
Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado soffrimento!{5}
VIII.
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faiscas me mostrou hum dia,
Donde hum puro crystal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que alli via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao soffrimento doce e leve.
Jura Amor, que brandura de vontade
Causa o primeiro effeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que he verdade.
Olhai como Amor gera, em hum momento,
De lagrimas de honesta piedade
Lagrimas de immortal contentamento.
IX.
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa juntamente chóro e rio;
O mundo todo abarco, e nada apérto.
He tudo quanto sinto hum desconcêrto:
Da alma hum fogo me sahe, da vista hum rio;
Agora espero, agora desconfio;
Agora desvarío, agora acérto.
Estando em terra, chego ao ceo voando;
N'hum'hora acho mil annos, e he de geito
Que em mil annos não posso achar hum'hora.
Se me pergunta alguem, porque assi ando,
Respondo, que não sei: porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.{6}
X.
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar:
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nella está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente póde descansar,
Pois com elle tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semidea,
Que como o accidente em seu sojeito,
Assi com a alma minha se confórma;
Está no pensamento como idea;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a materia simples busca a fórma.
XI.
Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.
Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga co'o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o soffrimento.
Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.
Mas se me vê co'os males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.{7}
XII.
Em flor vos arrancou, de então crescida,
(Ah Senhor Dom Antonio!) a dura sorte
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antiguos esquecida.
Huma só razão tenho conhecida
Com que tamanha mágoa se conforte:
Que se no Mundo havia honrada morte,
Não podieis vós ter mais larga vida.
Se meus humildes versos podem tanto
Que co'o desejo meu se iguale a arte,
Especial materia me sereis.
E celebrado em triste e longo canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memoria das gentes vivireis.
XIII.
N'hum jardim adornado de verdura,
Que esmaltavão por cima várias flores,
Entrou hum dia a deosa dos amores,
Com a deosa da caça e da espessura.
Diana tomou logo h~ua rosa pura,
Venus hum roxo lyrio, dos melhores;
Mas excedião muito ás outras flores
As violas na graça e formosura.
Perguntão a Cupido, que alli estava,
Qual de aquellas tres flores tomaria
Por mais suave e pura, e mais formosa.
Sorrindo-se o menino lhes tornava:
Todas formosas são; mas eu queria
Viola antes que lyrio, nem que rosa.{8}
XIV.
Todo animal da calma repousava,
Só Liso o ardor della não sentia;
Que o repouso do fogo, em que elle ardia,
Consistia na Nympha que buscava.
Os montes parecia que abalava
O triste som das mágoas que dizia:
Mas nada o duro peito commovia,
Que na vontade de outro posto estava.
Cansado ja de andar por a espessura,
No tronco de huma faia, por lembrança,
Escreve estas palavras de tristeza:
Nunca ponha ninguem sua esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser mudavel t~ee firmeza.
XV.
Busque Amor novas artes, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças;
Que não póde tirar-me as esperanças,
Pois mal me tirará o que eu não tenho.
Olhai de que esperanças me mantenho!
Vêde que perigosas seguranças!
Pois não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.
Mas com quanto não póde haver desgôsto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor hum mal, que mata e não se vê.
Que dias ha que na alma me t~ee posto
Hum não sei que, que nasce não sei onde;
Vem não sei como; e doe não sei porque.{9}
XVI.
Quem vê, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos bellos,
Se não perder a vista só com vellos,
Ja não paga o que deve a vosso gesto.
Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecellos,
Dei mais a vida e alma por querellos;
Donde ja me não fica mais de resto.
Assi que alma, que vida, que esperança,
E que quanto for meu, he tudo vosso:
Mas de tudo o interêsse eu só o levo.
Porque he tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
XVII.
Quando da bella vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão elevado sinto o pensamento,
Que me faz ver na terra o Paraiso.
Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento:
Assi que em termo tal, segundo sento,
Pouco vem a fazer quem perde o siso.
Em louvar-vos, Senhora, não me fundo;
Porque quem vossas graças claro sente,
Sentirá que não póde conhecellas.
Pois de tanta estranheza sois ao mundo,
Que não he de estranhar, Dama excellente,
Que quem vos fez, fizesse ceo e estrellas.{10}
XVIII.
Doces lembranças da passada gloria,
Que me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz hum'hora,
Que comigo ganhais pouca victoria.
Impressa tenho na alma larga historia
Deste passado bem, que nunca fôra;
Ou fôra, e não passára: mas ja agora
Em mi não póde haver mais que a memoria.
Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devêra ser lembrado,
Se lhe lembrára estado tão contente.
Oh quem tornar pudéra a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.
XIX.
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Ceo eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento Ethereo, onde subiste,
Memoria desta vida se consente,
Não te esqueças de aquelle amor ardente,
Que ja nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que póde merecer-te
Alg~ua cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remedio, de perder-te;
Roga a Deos que teus annos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.{11}
XX.
N'hum bosque, que das Nymphas se habitava,
Sibella, Nympha linda, andava hum dia;
E subida em huma árvore sombria,
As amarellas flores apanhava.
Cupido, que alli sempre costumava
A vir passar a sésta á sombra fria,
Em hum ramo arco e settas, que trazia,
Antes que adormecesse, pendurava.
A Nympha, como idoneo tempo víra
Para tamanha empresa, não dilata;
Mas com as armas foge ao moço esquivo.
As settas traz nos olhos, com que tira.
Ó Pastores! fugi, que a todos mata,
Senão a mim, que de matar-me vivo.
XXI.
Os Reinos e os Imperios poderosos,
Que em grandeza no mundo mais crescêrão;
Ou por valor de esfôrço florecêrão,
Ou por Barões nas letras espantosos.
Teve Grecia Themistocles famosos;
Os Scipiões a Roma engrandecêrão;
Doze Pares a França gloria derão;
Cides a Hespanha, e Laras bellicosos.
Ao nosso Portugal, que agora vemos
Tão differente de seu ser primeiro,
Os vossos derão honra e liberdade.
E em vós, grão successor e novo herdeiro
Do Braganção Estado, ha mil extremos
Iguaes ao sangue, e móres que a idade.{12}
XXII.
De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que he ter contentamento,
Se mais ha de perder quem mais alcança.
Mas dou-vos esta firme segurança:
Que postoque me mate o meu tormento,
Por as aguas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.
Antes sem vós meus olhos se entristeção,
Que com cousa outra alguma se contentem:
Antes os esqueçais, que vos esqueção.
Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereção
A gloria que em soffrer tal pena sentem.
XXIII.
Chara minha inimiga, em cuja mão
Poz meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Porque me falte a mi consolação.
Eternamente as águas lograrão
A tua peregrina formosura:
Mas em quanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharão.
E se meus rudos versos podem tanto,
Que possão prometter-te longa historia
De aquelle amor tão puro e verdadeiro;
Celebrada serás sempre em meu canto:
Porque em quanto no mundo houver memoria,
Será a minha escriptura o teu letreiro.{13}
XXIV.
Aquella triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Em quanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
Ella só, quando amena e marchetada
Sahia, dando á terra claridade,
Vio apartar-se de huma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada;
Ella só vio as lagrimas em fio,
Que de huns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formárão largo rio;
Ella ouvio as palavras magoadas,
Que puderão tornar o fogo frio,
E dar descanço ás almas condemnadas.
XXV.
Se quando vos perdi, minha esperança,
A memoria perdêra juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.
Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.
De cousas de que apenas hum signal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memorias perseguido.
Ah dura estrella minha! Ah grão tormento!
Que mal póde ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que he ja passado?{14}
XXVI.
Em formosa Lethea se confia,
Por onde vaidade tanta alcança,
Que, tornada em soberba a confiança,
Com os deoses celestes competia.
Porque não fosse avante esta ousadia,
(Que nascem muitos erros da tardança)
Em effeito puzerão a vingança
Que tamanha doudice merecia.
Mas Oleno, perdido por Lethea,
Não lhe soffrendo Amor que supportasse
Duro castigo em tanta formosura,
Quiz a pena tomar da culpa alhea:
Mas, porque a Morte Amor não apartasse,
Ambos tornados são em pedra dura.
XXVII.
Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto ha de durar tão duro intento?
Se dura, porque dure meu tormento,
Baste-vos quanto ja me atormentastes.
Mas se assi porfiais, porque cuidastes
Derribar o meu alto pensamento,
Mais póde a causa delle, em que o sustento,
Que vós, que della mesma o ser tomastes.
E pois vossa tenção com minha morte
He de acabar o mal destes amores,
Dai ja fim a tormento tão comprido.
Assi de ambos contente será a sorte;
Em vós por acabar-me, vencedores,
Em mim porque acabei de vós vencido.{15}
XXVIII.
Está-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta;
Nas bellas faces, e na boca e testa,
Cecens, rosas, e cravos debuxando.
De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto póde manifesta,
Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,
Se estão de vós, Senhora, namorando.
Se agora não quereis que quem vos ama
Possa colher o fructo destas flores,
Perderão toda a graça os vossos olhos.
Porque pouco aproveita, linda Dama,
Que semeasse o Amor em vós amores,
Se vossa condição produze abrolhos.
XXIX.
Sete annos de pastor Jacob servia
Labão, pae de Raquel, serrana bella:
Mas não servia ao pae, servia a ella,
Que a ella só por premio pertendia.
Os dias na esperança de hum só dia
Passava, contentando-se com vella:
Porém o pae, usando de cautella,
Em lugar de Raquel lhe deo a Lia.
Vendo o triste Pastor que com enganos
Assi lhe era negada a sua Pastora,
Como se a não tivera merecida;
Começou a servir outros sete annos,
Dizendo: Mais servíra, senão fôra
Para tão longo amor tão curta a vida.{16}
XXX.
Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as pennas ordenando;
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rustico raminho.
O cruel caçador, que do caminho
Se vem callado e manso desviando,
Com prompta vista a setta endireitando,
Lhe dá no Estygio Lago eterno ninho.
Desta arte o coração, que livre andava,
(Postoque ja de longe destinado)
Onde menos temia, foi ferido.
Porque o frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.
XXXI.
Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
He este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o t~ee, não sabe o que deseja.
Não ha cousa, a qüal natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só porque nunca falte onde sobeja.
Mas este puro affecto em mim se dana:
Que, como a grave pedra t~ee por arte
O centro desejar da natureza;
Assi meu pensamento por a parte,
Que vai tomar de mi, terreste e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.{17}
XXXII.
Porque quereis, Senhora, que offereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer está quem vos mereça.
Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.
Assi que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura; mas devêsma
Por ser capaz de tantos desfavores.
E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual comvosco mesma,
Vós só comvosco mesma andai de amores.
XXXIII.
Se tanta pena tenho merecida
Em pago de soffrer tantas durezas;
Provai, Senhora, em mi vossas cruezas,
Que aqui tendes huma alma offerecida.
Nella experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas;
Que móres soffrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.
Mas contra vossos olhos quaes serão?
He preciso que tudo se lhes renda;
Mas porei por escudo o coração.
Porque em tão dura e aspera contenda
He bem que, pois não acho defensão,
Com meter-me nas lanças me defenda.{18}
XXXIV.
Quando o sol encoberto vai mostrando
Ao mundo a luz quieta e duvidosa,
Ao longo de huma praia deleitosa
Vou na minha inimiga imaginando.
Aqui a vi os cabellos concertando;
Alli co'a mão na face, tão formosa;
Aqui fallando alegre, alli cuidosa;
Agora estando quêda, agora andando.
Aqui esteve sentada, alli me vio,
Erguendo aquelles olhos, tão isentos;
Commovida aqui hum pouco, alli segura.
Aqui se entristeceo, alli se rio:
E, em fim, nestes cansados pensamentos
Passo esta vida vãa, que sempre dura.
XXXV.
Hum mover de olhos, brando e piedoso,
Sem ver de que; hum riso brando e honesto,
Quasi forçado; hum doce e humilde gesto,
De qualquer alegria duvidoso:
Hum despejo quieto e vergonhoso;
Hum repouso gravissimo e modesto;
Huma pura bondade, manifesto
Indicio da alma, limpo e gracioso:
Hum encolhido ousar; huma brandura;
Hum medo sem ter culpa; hum ar sereno;
Hum longo e obediente soffrimento:
Esta foi a celeste formosura
Da minha Circe, e o magico veneno
Que pôde transformar meu pensamento.{19}
XXXVI.
Tomou-me vossa vista soberana
Adonde tinha as armas mais á mão,
Por mostrar a quem busca defensão
Contra esses bellos olhos, que se engana.
Por ficar da victoria mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão.
Bem salvar-me cuidei, mas foi em vão,
Que contra o Ceo não val defensa humana.
Com tudo, se vos tinha promettido
O vosso alto destino esta victoria,
Ser-vos ella bem pouca está entendido.
Pois, indaque eu me achasse apercebido,
Não levais de vencer-me grande gloria,
Eu a levo maior de ser vencido.
XXXVII.
Não passes, caminhante. Quem me chama?
H~ua memoria nova e nunca ouvida,
De hum que trocou finita e humana vida
Por divina, infinita, e clara fama.
Quem he, que tão gentil louvor derrama?
Quem derramar seu sangue não duvida,
Por seguir a bandeira esclarecida
De hum capitão de Christo que mais ama.
Ditoso fim, ditoso sacrificio,
Que a Deos se fez e ao mundo juntamente!
Pregoando direi tão alta sorte.
Mais poderás contar a toda a gente
Que sempre deo na vida claro indicio
De vir a merecer tão santa morte.{20}
XXXVIII.
Formosos olhos, que na idade nossa
Mostrais do Ceo certissimos signais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.
Vereis que do viver me desapossa
Aquelle riso com que a vida dais:
Vereis como de Amor não quero mais,
Por mais que o tempo corra, o damno possa.
E se ver-vos nesta alma, emfim, quizerdes,
Como em hum claro espelho, alli vereis
Tambem a vossa angelica e serena.
Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, Senhora, não quereis:
Tanto gôsto levais de minha pena!
XXXIX.
O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil, que eu na alma vejo,
Se accendeo de outro fogo do desejo
Por alcançar a luz que vence o dia.
Como de dous ardores se encendia,
Da grande impaciencia fez despejo,
E remettendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
Ditosa aquella flamma que se atreve
A apagar seus adores e tormentos
Na vista a quem o sol temores deve!
Namorão-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquella neve
Que queima corações e pensamentos.{21}
XL.
Alegres campos, verdes arvoredos,
Claras e frescas águas de crystal,
Que em vós os debuxais ao natural,
Discorrendo da altura dos rochedos:
Sylvestres montes, asperos penedos
Compostos de concêrto desigual;
Sabei que sem licença de meu mal
Ja não podeis fazer meus olhos ledos.
E pois ja me não vêdes como vistes,
Não me alegrem verduras deleitosas,
Nem águas que correndo alegres vem.
Semearei em vós lembranças tristes,
Regar-vos-hei com lagrimas saudosas,
E nascerão saudades de meu bem.
XLI.
Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de hum aspero receio
Salteado Laurenio a côr perdia.
Ella, que a Sylvio mais que a si queria,
Para podê-lo ver não tinha meio.
Ora como curára o mal alheio
Quem o seu mal tão mal curar podia?
Elle, que vio tão clara esta verdade,
Com soluços dizia (que a espessura
Inclinavão, de mágoa, a piedade):
Como póde a desordem da natura
Fazer tão differentes na vontade
Aos que fez tão conformes na ventura?{22}
XLII.
Lindo e subtil trançado, que ficaste
Em penhor do remedio que mereço,
Se só comtigo, vendo-te, endoudeço,
Que fôra co'os cabellos que apertaste?
Aquellas tranças de ouro que ligaste,
Que os raios do sol t~ee em pouco preço,
Não sei se ou para engano do que peço,
Ou para me matar as desataste.
Lindo trançado, em minhas mãos te vejo,
E por satisfação de minhas dores,
Como quem não t~ee outra, hei de tomar-te.
E se não for contente o meu desejo,
Dir-lhe-hei que nesta regra dos amores
Por o todo tambem se toma a parte.
XLIII.
O cysne quando sente ser chegada
A hora que põe termo á sua vida,
Harmonia maior, com voz sentida,
Levanta por a praia inhabitada.
Deseja lograr vida prolongada,
E della está chorando a despedida:
Com grande saudade da partida,
Celebra o triste fim desta jornada.
Assi, Senhora minha, quando eu via
O triste fim que davão meus amores,
Estando posto ja no extremo fio;
Com mais suave accento de harmonia
Descantei por os vossos desfavores
La vuestra falsa fe, y el amor mio.{23}
XLIV.
Por os raros extremos que mostrou
Em sábia Pallas, Venus em formosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
Africa, Europa e Asia as adorou.
Aquelle saber grande que juntou
Esprito e corpo em liga generosa,
Esta mundana máchina lustrosa,
De sós quatro elementos fabricou.
Mas fez maior milagre a natureza
Em vós, Senhoras, pondo em cada h~ua
O que por todas quatro repartio.
A vós seu resplandor deo sol e l~ua:
A vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Agua vos servio.
XLV.
Tomava Daliana por vingança
Da culpa do pastor que tanto amava,
Casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
O êrro alheio, e perfida esquivança.
A discrição segura, a confiança
Das rosas que o seu rosto debuxava,
O descontentamento lhas mudava;
Que tudo muda huma aspera mudança.
Gentil planta disposta em sêcca terra;
Lindo fructo de dura mão colhido;
Lembranças de outro amor, e fé perjura,
Tornárão verde prado em serra dura;
Interêsse enganoso, amor fingido,
Fizerão desditosa a formosura.{24}
XLVI.
Grão tempo ha ja que soube da Ventura
A vida que me tinha destinada;
Que a longa experiencia da passada
Me dava claro indicio da futura.
Amor fero e cruel, Fortuna escura,
Bem tendes vossa fôrça exprimentada:
Assolai, destrui, não fique nada;
Vingai-vos desta vida, que inda dura.
Soube Amor da Ventura, que a não tinha,
E porque mais sentisse a falta della,
De imagens impossiveis me mantinha.
Mas vós, Senhora, pois que minha estrella
Não foi melhor, vivei nesta alma minha;
Que não t~ee a Fortuna poder nella.
XLVII.
Se somente hora alguma em vós piedade
De tão longo tormento se sentíra,
Amor sofrêra mal que eu me partíra
De vossos olhos, minha Saudade.
Apartei-me de vós, mas a vontade,
Que por o natural na alma vos tira,
Me faz crer que esta ausencia he de mentira;
Porém venho a provar que he de verdade.
Ir-me-hei, Senhora; e neste apartamento
Lagrimas tristes tomarão vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.
Desta arte darei vida a meu tormento;
Que, em fim, cá me achará minha lembrança
Sepultado no vosso esquecimento.{25}
XLVIII.
Oh como se me alonga de anno em ano
A peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!
Mingoando a idade vai, crescendo o dano;
Perdeo-se-me hum remedio, que inda tinha:
Se por experiencia se adivinha,
Qualquer grande esperança he grande engano.
Corro apoz este bem que não se alcança;
No meio do caminho me fallece;
Mil vezes caio, e perco a confiança.
Quando elle foge, eu tardo; e na tardança,
Se os olhos ergo a ver se inda apparece,
Da vista se me perde, e da esperança.
XLIX.
Ja he tempo, ja, que minha confiança
Se desça de huma falsa opinião:
Mas Amor não se rege por razão;
Não posso perder, logo, a esperança.
A vida si; que huma aspera mudança
Não deixa viver tanto hum coração,
E eu só na morte tenho a salvação:
Si: mas quem a deseja não a alcança.
Forçado he logo que eu espere e viva.
Ali dura lei de Amor, que não consente
Quietação n'hum'alma que he captiva!
Se hei de viver, em fim, forçadamente,
Para que quero a gloria fugitiva
De huma esperança vãa que me atormente?{26}
L.
Amor, com a esperança ja perdida
Teu soberano templo visitei:
Por signal do naufragio que passei,
Em lugar dos vestidos, puz a vida.
Que mais queres de mi, pois destruida
Me t~ees a gloria toda que alcancei?
Não cuides de render-me; que não sei
Tornar a entrar-me onde não ha sahida.
Vês aqui a vida, e a alma, e a esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Em quanto o quiz aquella que eu adoro.
Nellas podes tomar de mi vingança:
E se te queres inda mais vingado,
Contenta-te co'as lagrimas que chóro.
LI.
Apollo e as nove Musas, descantando
Com a dourada lyra, me influião
Na suave harmonia que fazião,
Quando tomei a penna, começando:
Ditoso seja o dia e hora, quando
Tão delicados olhos me ferião!
Ditosos os sentidos que sentião
Estar-se em seu desejo traspassando!
Assi cantava, quando Amor virou
A roda á esperança, que corria
Tão ligeira, que quasi era invisibil.
Converteo-se-me em noite o claro dia;
E se alguma esperança me ficou,
Será de maior mal, se for possibil.{27}
LII.
Lembranças saudosas, se cuidais
De me acabar a vida neste estado,
Não vivo com meu mal tão enganado,
Que não espere delle muito mais.
De longo tempo ja me costumais
A viver de algum bem desesperado:
Ja tenho co'a Fortuna concertado
De soffrer os tormentos que me dais.
Atada ao remo tenho a paciencia
Para quantos desgostos der a vida;
Cuide quanto quizer o pensamento.
Que pois não posso ter mais resistencia
Para tão dura quéda, de subida,
Aparar-lhe-hei debaixo o soffrimento.
LIII.
Apartava-se Nise de Montano,
Em cuja alma, partindo-se, ficava;
Que o pastor na memoria a debuxava,
Por poder sustentar-se deste engano.
Por huma praia do Indico Oceano
Sôbre o curvo cajado se encostava,
E os olhos por as águas alongava,
Que pouco se doião de seu dano.
Pois com tamanha mágoa e saudade,
(Dizia) quiz deixar-me a que eu adoro,
Por testimunhas tómo ceo e estrellas.
Mas se em vós, ondas, mora piedade,
Levai tambem as lagrimas que chóro,
Pois assi me levais a causa dellas.{28}
LIV.
Quando vejo que meu destino ordena
Que, por me exprimentar, de vós me aparte,
Deixando de meu bem tão grande parte,
Que a mesma culpa fica grave pena;
O duro desfavor, que me condena,
Quando por a memoria se reparte,
Endurece os sentidos de tal arte
Que a dor da ausencia fica mais pequena.
Mas como póde ser que na mudança
D'aquillo que mais quero, estê tão fóra
De me não apartar tambem da vida?
Eu refrearei tão aspera esquivança:
Porque mais sentirei partir, Senhora,
Sem sentir muito a pena da partida.
LV.
Despois de tantos dias mal gastados,
Despois de tantas noites mal dormidas,
Despois de tantas lagrimas vertidas,
Tantos suspiros vãos vãamente dados,
Como não sois vós ja desenganados,
Desejos, que de cousas esquecidas
Quereis remediar mortaes feridas.
Que Amor fez sem remedio, o Tempo, os Fados?
Se não tivereis ja longa exp'riencia
Das semrazões de Amor a quem servistes,
Fraqueza fôra em vós a resistencia.
Mas pois por vosso mal seus males vistes,
Que o tempo não curou, nem larga ausencia,
Qual bem delle esperais, desejos tristes?{29}
LVI.
Naiades, vós que os rios habitais,
Que os saudosos campos vão regando,
De meus olhos vereis estar manando
Outros que quasi aos vossos são iguais.
Dryades, que com setta sempre andais
Os fugitivos cervos derribando,
Outros olhos vereis, que triumphando
Derribão corações, que valem mais.
Deixai logo as aljavas e águas frias,
E vinde, Nymphas bellas, se quereis,
A ver como de huns olhos nascem mágoas.
Notareis como em vão passão os dias;
Mas em vão não vireis, porque achareis
Nos seus as settas, e nos meus as ágoas.
LVII.
Mudão-se os tempos, mudão-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo he composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Differentes em tudo da esperança:
Do mal ficão as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que ja coberto foi de neve fria,
E em mi converte em chôro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda ja como sohia.{30}
LVIII.
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permittirem que eu tanto viva dellas,
Que veja escuro o lume das estrellas,
Em cuja vista o meu se accende e mata;
E se o tempo, que tudo desbarata,
Seccar as frescas rosas, sem colhellas,
Deixando a linda côr das tranças bellas
Mudada de ouro fino em fina prata;
Tambem, Senhora, então vereis mudado
O pensamento e a aspereza vossa,
Quando não sirva ja sua mudança.
Ver-vos-heis suspirar por o passado,
Em tempo quando executar-se possa
No vosso arrepender minha vingança.
LIX.
Quem jaz no grão sepulchro, que descreve
Tão illustres signaes no forte escudo?
Ninguem; que nisso, em fim se torna tudo:
Mas foi quem tudo pôde e tudo teve.
Foi Rei? Fez tudo quanto a Rei se deve:
Poz na guerra e na paz devido estudo.
Mas quão pezado foi ao Mouro rudo,
Tanto lhe seja agora a terra leve.
Alexandro será? Ninguem se engane:
Mais que o adquirir, o sustentar estima.
Será Hadriano grão Senhor do mundo?
Mais observante foi da Lei de cima.
He Numa? Numa não, mas he Joane.
De Portugal Terceiro sem segundo.{31}
LX.
Quem póde livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juizo socegado,
Se o menino, que de olhos he privado,
Nas meninas dos vossos olhos mora?
Alli manda, alli reina, alli namora,
Alli vive das gentes venerado;
Que o vivo lume, e o rosto delicado,
Imagens são adonde Amor se adora.
Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que crespos fios de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,
Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito traspassando,
Assi como hum crystal o sol traspassa.
LXI.
Como fizeste, ó Porcia, tal ferida?
Foi voluntaria, ou foi por innocencia?
He que Amor fazer só quiz exp'riencia
Se podia eu soffrer tirar-me a vida.
E com teu proprio sangue te convida
A que faças á morte resistencia?
He que costume faço da paciencia,
Porque o temor morrer me não impida.
Pois porque estás comendo fogo ardente,
Se a ferro te costumas? He que ordena
Amor que morra, e pene juntamente.
E t~ees a dor do ferro por pequena?
Si; que a dor costumada não se sente;
E não quero eu a morte sem a pena.{32}
LXII.
De tão divino accento em voz humana,
De elegancias que são tão peregrinas,
Sei bem que minhas obras não são dinas;
Que o rudo engenho meu me desengana.
Porém da vossa penna illustre mana
Licor que vence as águas Caballinas;
E comvosco do Tejo as flores finas
Farão inveja á cópia Mantuana.
E pois, a vós de si não sendo avaras,
As filhas de Mnemosine formosa
Partes dadas vos t~ee ao mundo claras;
A minha Musa, e a vossa tão famosa,
Ambas se podem nelle chamar raras,
A vossa de alta, a minha de invejosa.
LXIII.
Debaixo desta pedra está metido,
Das sanguinosas armas descansado,
O Capitão illustre e assinalado
Dom Fernando de Castro esclarecido.
Este por todo o Oriente tão temido,
Este da propria inveja tão cantado,
Este, em fim, raio de Mavorte irado,
Aqui está agora em terra convertido.
Alegra-te, ó guerreira Lusitania,
Por est'outro Viriato que criaste,
E chora a perda sua eternamente.
Exemplo toma nisto de Dardania;
Que se a Roma com elle anniquilaste,
Nem por isso Carthago está contente.{33}
LXIV.
Que vençais no Oriente tantos Reis,
Que de novo nos deis da India o Estado,
Que escureçais a fama que hão ganhado
Aquelles, que a ganhárão de infieis;
Que vencidas tenhais da morte as leis,
E que vencesseis tudo, em fim, armado,
Mais he vencer na patria, desarmado,
Os monstros e as Chimeras que venceis.
Sôbre vencerdes, pois, tanto inimigo,
E por armas fazer que sem segundo
No mundo o vosso nome ouvido seja;
O que vos dá mais fama inda no mundo,
He vencerdes, Senhor, no Reino amigo,
Tantas ingratidões, tão grande inveja.
LXV.
Vossos olhos, Senhora, que competem
Com o sol em belleza e claridade,
Enchem os meus de tal suavidade,
Que em lagrimas de vê-los se derretem.
Meus sentidos prostrados se submetem
Assi cegos a tanta magestade;
E da triste prisão, da escuridade,
Cheios de medo, por fugir, remetem.
Porém se então me vêdes por acêrto,
Esse aspero desprêzo com que olhais
Me torna a animar a alma enfraquecida.
Oh gentil cura! Oh estranho desconcêrto!
Que dareis co'hum favor que vós não dais,
Quando com hum desprêzo me dais vida?{34}
LXVI.
Formosura do Ceo a nós descida,
Que nenhum coração deixas isento,
Satisfazendo a todo pensamento,
Sem que sejas de algum bem entendida;
Qual lingoa póde haver tão atrevida,
Que tenha de louvar-te atrevimento,
Pois a parte melhor do entendimento,
No menos que em ti ha se vê perdida?
Se em teu valor contemplo a menor parte,
Vendo que abre na terra hum paraiso,
Logo o engenho me falta, o esprito míngoa.
Mas o que mais me impede inda louvar-te,
He que quando te vejo perco a lingoa,
E quando não te vejo perco o siso.
LXVII.
Pois meus olhos não cansão de chorar
Tristezas não cansadas de cansar-me;
Pois não se abranda o fogo em que abrazar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar;
Não canse o cego Amor de me guiar
Onde nunca de lá possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Em quanto a fraca voz me não deixar.
E se em montes, se em prados, e se em valles
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, agoas;
Oução a longa historia de meus males,
E curem sua dor com minha dor;
Que grandes mágoas podem curar mágoas.{35}
LXVIII.
Dai-me h~ua lei, Senhora, de querer-vos,
Porque a guarde sobpena de enojar-vos;
Pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
Fara que fique em lei de obedecer-vos.
Tudo me defendei, senão só ver-vos
E dentro na minha alma contemplar-vos;
Que se assi não chegar a contentar-vos,
Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.
E se essa condição cruel e esquiva
Que me deis lei de vida não consente,
Dai-ma, Senhora, ja, seja de morte.
Se nem essa me dais, he bem que viva,
Sem saber como vivo, tristemente;
Mas contente estarei com minha sorte.
LXIX.
Ferido sem ter cura perecia
O forte e duro Télepho temido
Por aquelle que na agua foi metido,
E a quem ferro nenhum cortar podia.
Quando a Apollineo Oraculo pedia
Conselho para ser restituido,
Respondeo-lhe, tornasse a ser ferido
Por quem o ja ferira, e sararia.
Assi, Senhora, quer minha ventura;
Que ferido de ver-vos claramente,
Com tornar-vos a ver Amor me cura.
Mas he tão doce vossa formosura,
Que fico como o hydropico doente,
Que bebendo lhe cresce mór seccura.{36}
LXX.
Na metade do ceo subido ardia
O claro, almo Pastor, quando deixavão
O verde pasto as cabras, e buscavão
A frescura suave da agua fria.
Com a folha das árvores, sombria,
Do raio ardente as aves se amparavão:
O módulo cantar, de que cessavão,
Só nas roucas cigarras se sentia.
Quando Liso pastor n'hum campo verde
Natercia, crua Nympha, só buscava
Com mil suspiros tristes que derrama.
Porque te vás de quem por ti se perde,
Para quem pouco te ama? (suspirava)
E o eco lhe responde: Pouco te ama.
LXXI.
Ja a roxa e branca Aurora destoucava
Os seus cabellos de ouro delicados,
E das flores os campos esmaltados
Com crystallino orvalho borrifava;
Quando o formoso gado se espalhava
De Sylvio e de Laurente por os prados;
Pastores ambos, e ambos apartados,
De quem o mesmo amor não se apartava.
Com verdadeiras lagrimas Laurente,
Não sei, (dizia) ó Nympha delicada,
Porque não morre ja quem vive ausente;
Pois a vida sem ti não presta nada.
Responde Sylvio: Amor não o consente:
Que offende as esperanças da tornada.{37}
LXXII.
Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquella alma me apparece,
Que para mi foi sonho nesta vida.
Lá n'huma soidade, onde estendida
A vista por o campo desfallece,
Corro apoz ella; e ella então parece
Que mais de mi se alonga, compellida.
Brado: Não me fujais, sombra benina.
Ella (os olhos em mi co'hum brando pejo,
Como quem diz, que ja não póde ser)
Torna a fugir-me: torno a bradar: Dina...
E antes que diga mene, acórdo, e vejo
Que nem hum breve engano posso ter.
LXXIII.
Suspiros inflammados que cantais
A tristeza com que eu vivi tão ledo,
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Letheio vos percais.
Escriptos para sempre ja ficais
Onde vos mostrarão todos co'o dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.
Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna, (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças)
Dizei-lhe, que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não ha senão enganos.{38}
LXXIV.
Aquella fera humana que enriquece
A sua presunçosa tyrannia
Destas minhas entranhas, onde cria
Amor hum mal, que falta quando crece;
Se nella o Ceo mostrou (como parece)
Quanto mostrar ao mundo pretendia,
Porque de minha vida se injuria?
Porque de minha morte se ennobrece?
Ora, em fim, sublimai vossa victoria,
Senhora, com vencer-me e captivar-me:
Fazei della no mundo larga historia.
Pois, por mais que vos veja atormentar-me,
Ja me fico logrando desta gloria
De ver que tendes tanta de matar-me.
LXXV.
Ditoso seja aquelle que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por ellas não perde as esperanças
De poder n'algum tempo ser contente.
Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porqu'inda que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.
Ditoso seja, em fim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem hum coração atormentado.
Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não póde haver perdão
Sem ficar na alma a mágoa do peccado.{39}
LXXVI.
Quem fosse acompanhando juntamente
Por esses verdes campos a avezinha,
Que despois de perder hum bem que tinha,
Não sabe mais que cousa he ser contente!
E quem fosse apartando-se da gente.
Ella por companheira e por vizinha,
Me ajudasse a chorar a pena minha,
E eu a ella tambem a que ella sente!
Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo,
Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.
Mas triste quem de longe quiz ventura
Que para respirar lhe falte o vento,
E para tudo, em fim, lhe falte o mundo!
LXXVII.
O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.
Amor alli, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Com huma rara e angelica figura
A vista da razão me salteava.
Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia;
Deixei-me captivar: mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.{40}
LXXVIII.
Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra hum paraiso;
Entre rubis e perlas doce riso,
Debaixo de ouro e neve côr de rosa;
Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se póde por arte e por aviso,
Como por natureza, ser formosa;
Falla de que ou ja vida, ou morte pende.
Rara e suave, em fim, Senhora, vossa,
Repouso na alegria comedido;
Estas as armas são com que me rende
E me captiva Amor; mas não que possa
Despojar-me da gloria de rendido.
LXXIX.
Bem sei, Amor, que he certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.
A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus damnos ás escuras:
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.
Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mi me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.
Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar hum moço cego?{41}
LXXX.
Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De hum naufragio cruel sahindo a nado,
Só de ouvir fallar nelle está medroso:
Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire socegado;
Mas esquecido ja do horror passado,
Delle a fiar se torna cobiçoso:
Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;
Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me tórno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.
LXXXI.
Amor he hum fogo que arde sem se ver;
He ferida que doe e não se sente;
He hum contentamento descontente;
He dor que desatina sem doer;
He hum não querer mais que bem querer;
He solitario andar por entre a gente;
He hum não contentar-se de contente;
He cuidar que se ganha em se perder;
He hum estar-se preso por vontade;
He servir a quem vence o vencedor;
He hum ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar póde o seu favor
Nos mortaes corações conformidade,
Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?{42}
LXXXII.
Se pena por amar-vos se merece,
Quem della estará livre? quem isento?
E que alma, que razão, que entendimento
No instante em que vos vê não obedece?
Qual mor gloria na vida ja se offrece,
Que a de occupar-se em vós o pensamento?
Não só todo rigor, todo tormento
Com ver-vos não magôa, mas se esquece.
Porém se heis de matar a quem amando,
Ser vosso de amor tanto só pretende,
O mundo matareis, que todo he vosso.
Em mi podeis, Senhora, ir começando,
Pois bem claro se mostra e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
LXXXIII.
Que levas, cruel Morte? Hum claro dia.
A que horas o tomaste? Amanhecendo.
E entendes o que levas? Não o entendo.
Pois quem to faz levar? Quem o entendia.
Seu corpo quem o goza? A terra fria.
Como ficou sua luz? Anoitecendo.
Lusitania que diz? Fica dizendo...
Que diz? Não mereci a grã Maria.
Mataste a quem a vio? Ja morto estava.
Que discorre o Amor? Fallar não ousa.
E quem o faz callar? Minha vontade.
Na Corte que ficou? Saudade brava.
Que fica lá que ver? Nenhuma cousa.
Que gloria lhe faltou? Esta beldade.{43}
LXXXIV.
Ondados fios de ouro reluzente,
Que agora da mão bella recolhidos,
Agora sôbre as rosas esparzidos
Fazeis que a sua graça se accrescente;
Olhos, que vos moveis tão docemente,
Em mil divinos raios incendidos,
Se de cá me levais a alma e sentidos,
Que fôra, se eu de vós não fôra ausente?
Honesto riso, que entre a mór fineza
De perlas e coraes nasce e apparece;
Oh quem seus doces ecos ja lhe ouvisse!
Se imaginando só tanta belleza,
De si com nova gloria a alma se esquece,
Que será quando a vir? Ah quem a visse!
LXXXV.
Foi ja n'hum tempo doce cousa amar,
Em quanto me enganou huma esperança:
O coração com esta confiança
Todo se desfazia em desejar.
Oh vão, caduco e debil esperar!
Como, em fim, desengana huma mudança!
Que quanto he mor a bem-aventurança,
Tanto menos se crê que ha de durar.
Quem ja se vio com gostos prosperado,
Vendo-se brevemente em pena tanta,
Razão t~ee de viver bem magoado.
Mas quem ja t~ee o mundo exprimentado,
Não o magôa a pena, nem o espanta;
Que mal se estranhára o costumado.{44}
LXXXVI.
Dos antigos Illustres, que deixárão
Hum nome digno de immortal memoria,
Ficou por luz do tempo a larga historia
Dos feitos em que mais se avantajárão.
Se com suas acções se cotejárão
Mil vossas, cada huma tão notoria,
Vencêra a menor dellas a mor gloria
Que elles em tantos annos alcançárão.
A gloria sua foi: ninguem lha tome:
Seguindo cada qual varios caminhos
Estatuas mereceo no heroico Templo.
Vós honra Portugueza e dos Coutinhos,
Clarissimo Dom João, com melhor nome
A vós encheis de gloria, a nós de exemplo.
LXXXVII.
Conversação doméstica affeiçoa,
Ora em fórma de limpa e sãa vontade,
Ora de huma amorosa piedade,
Sem olhar qualidade de pessoa.
Se despois, por ventura, vos magôa
Com desamor e pouca lealdade,
Logo vos faz mentira da verdade
O brando Amor, que tudo, em fim, perdoa,
Não são isto que fallo conjecturas
Que o pensamento julga na apparencia,
Por fazer delicadas escripturas.
Metida tenho a mão na consciencia,
E não fallo senão verdades puras
Que me ensinou a viva experiencia.{45}
LXXXVIII.
Esfôrço grande, igual ao pensamento,
Pensamentos em obras divulgados,
E não em peito timido encerrados,
E desfeitos despois em chuva e vento;
Ánimo da cobiça baixa isento,
Digno por isto só de altos estados,
Fero açoute dos nunca bem domados
Povos do Malabar sanguinolento;
Gentileza de membros corporaes
Ornados de pudica continencia,
Obra por certo da celeste altura:
Estas virtudes raras e outras mais,
Dignas todas da Homerica eloquencia,
Jazem debaixo desta sepultura.
LXXXIX.
No mundo quiz o Tempo que se achasse
O bem que por acêrto, ou sorte vinha;
E por exprimentar que dita tinha,
Quiz que a Fortuna em mi se exprimentasse.
Mas porque o meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra, estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida puz nas mãos de hum leve lenho.
Mas, segundo o que o Ceo me t~ee mostrado,
Ja sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho ja que não a tenho.{46}
XC.
A perfeição, a graça, o doce geito,
A Primavera cheia de frescura,
Que sempre em vós florece; a que a ventura,
E a razão entregárão este peito;
Aquelle crystallino e puro aspeito,
Que em si comprehende toda a formosura;
O resplandor dos olhos e a brandura,
Donde Amor a ninguem quiz ter respeito;
S'isto que em vós se vê, ver desejais,
Como digno de ver-se claramente,
Por muito que de Amor vos isentais;
Traduzido o vereis tão fielmente
No meio deste espirito onde estais,
Que vendo-vos sintais o que elle sente.
XCI.
Vós, que de olhos suaves e serenos,
Com justa causa a vida captivais,
E que os outros cuidados condemnais
Por indevidos, baixos e pequenos;
Se de Amor os domesticos venenos
Nunca provastes, quero que sintais
Que he tanto mais o amor despois que amais,
Quanto são mais as causas de ser menos.
E não presuma alguem que algum defeito,
Quando na cousa amada se apresenta,
Possa diminuir o amor perfeito:
Antes o dobra mais; e se atormenta,
Pouco a pouco desculpa o brando peito;
Que Amor com seus contrarios se accrescenta.{47}
XCII.
Que poderei do mundo ja querer,
Pois no mesmo em que puz tamanho amor,
Não vi senão desgôsto e desfavor,
E morte, em fim; que mais não póde ser?
Pois me não farta a vida de viver,
Pois ja sei que não mata grande dor,
Se houver cousa que mágoa dê maior,
Eu a verei; que tudo posso ver.
A Morte, a meu pezar, me assegurou
De quanto mal me vinha: ja perdi
O que a perder o medo me ensinou.
Na vida desamor somente vi,
Na morte a grande dor que me ficou:
Parece que para isto só nasci.
XCIII.
Pensamentos, que agora novamente
Cuidados vãos em mi resuscitais,
Dizei-me: E ainda não vos contentais
De ter a quem vos t~ee tão descontente?
Que phantasia he esta, que presente
Cad'hora ante os meus olhos me mostrais?
Com huns sonhos tão vãos inda tentais
Quem nem por sonhos póde ser contente?
Vejo-vos, pensamentos, alterados,
E não quereis, de esquivos, declarar-me
Que he isto que vos traz tão enleados?
Não mo negueis, se andais para negar-me;
Porque se contra mi 'stais levantados,
Eu vos ajudarei mesmo a matar-me.{48}
XCIV.
Se tomo a minha pena em penitencia
Do error em que cahio o pensamento,
Não abrando, mas dóbro meu tormento,
Que a tanto, e mais, obriga a paciencia.
E se huma côr de morto na apparencia,
Hum espalhar suspiros vãos ao vento
Não faz em vós, Senhora, movimento,
Fique o meu mal em vossa consciencia.
Mas se de qualquer aspera mudança
Toda vontade isenta Amor castiga,
(Como eu vejo no mal que me condena)
E se em vós não se entende haver vingança,
Será forçado (pois Amor me obriga)
Que eu só da culpa vossa pague a pena.
XCV.
Aquella que, de pura castidade,
De si mesma tomou cruel vingança
Por huma breve e subita mudança
Contrária á sua honra e qualidade;
Venceo á formosura a honestidade,
Venceo no fim da vida a esperança,
Porque ficasse viva tal lembrança,
Tal amor, tanta fé, tanta verdade.
De si, da gente e do mundo esquecida,
Ferio com duro ferro o brando peito,
Banhando em sangue a fôrça do tyrano.
Oh ousadia estranha! estranho feito!
Que dando breve morte ao corpo humano,
Tenha sua memoria larga vida!{49}
XCVI.
Os vestidos Elisa revolvia,
Que Eneas lhe deixára por memoria;
Doces despojos da passada gloria;
Doces quando seu fado o consentia.
Entre elles a formosa espada via,
Que instrumento, em fim, foi da triste historia;
E como quem de si tinha a victoria,
Fallando só com ella, assi dizia:
Formosa e nova espada, se ficaste
Só porque executasses os enganos
De quem te quiz deixar, em minha vida;
Sabe que tu comigo te enganaste;
Que para me tirar de tantos danos
Sobeja-me a tristeza da partida.
XCVII.
Oh quão caro me custa o entender-te,
Molesto Amor que, só por alcançar-te,
De dor em dor me tens trazido a parte
Donde em ti odio e íra se converte!
Cuidei que para em tudo conhecer-te
Me não faltava experiencia e arte;
Mas na alma vejo agora accrescentar-te
Aquillo que era causa de perder-te.
Estavas tão secreto no meu peito,
Que eu mesmo, que te tinha, não sabia
Que me senhoreavas deste geito.
Descubriste-te agora; e foi por via
Que teu descobrimento e meu defeito,
Hum me envergonha e outro me injuria.{50}
XCVIII.
Se despois de esperança tão perdida,
Amor por causa alguma consentisse
Que inda algum'hora breve alegre visse
De quantas tristes vio tão longa vida;
Hum'alma ja tão fraca e tão cahida
(Quando a sorte mais alto me subisse)
Não tenho para mi que consentisse
Alegria tão tarde consentida.
Nem tamsomente o Amor me não mostrou
Hum'hora em que vivesse alegremente,
De quantas nesta vida me negou;
Mas inda tanta pena me consente,
Que co'o contentamento me tirou
O gôsto de algum'hora ser contente.
XCIX.
O raio crystallino se estendia
Por o mundo da Aurora marchetada,
Quando Nise, pastora delicada,
Donde a vida deixava se partia.
Dos olhos, com que o sol escurecia,
Levando a luz em lagrimas banhada,
De si, do fado, e tempo magoada,
Pondo os olhos no Ceo, assi dizia:
Nasce, sereno sol, puro e luzente;
Resplandece, purpurea e branca aurora,
Qualquer alma alegrando descontente;
Que a minha, sabe tu que desde agora
Jamais na vida a podes ver contente,
Nem tão triste nenhuma outra pastora.{51}
C.
No mundo poucos annos e cansados
Vivi, cheios de vil miseria e dura:
Foi-me tão cedo a luz do dia escura,
Que não vi cinco lustros acabados.
Corri terras e mares apartados,
Buscando á vida algum remedio ou cura:
Mas aquillo que, em fim, não dá ventura
Não o dão os trabalhos arriscados.
Criou-me Portugal na verde e chara
Patria minha Alemquer; mas ar corruto,
Que neste meu terreno vaso tinha,
Me fez manjar de peixes em ti, bruto
Mar, que bates a Abássia fera e avara,
Tão longe da ditosa patria minha.
CI.
Vós, que escuitais em Rimas derramado
Dos suspiros o som que me alentava
Na juvenil idade, quando andava
Em outro em parte do que sou mudado;
Sabei que busca só do ja cantado
No tempo em que ou temia ou esperava,
De quem o mal provou, que eu tanto amava,
Piedade, e não perdão, o meu cuidado.
Pois vejo que tamanho sentimento
Só me rendeo ser fábula da gente,
(Do que comigo mesmo me envergonho)
Sirva de exemplo claro meu tormento,
Com que todos conheção claramente
Que quanto ao mundo apraz he breve sonho.{52}
CII.
De amor escrevo, de amor trato e vivo;
De amor me nasce amar sem ser amado;
De tudo se descuida o meu cuidado,
Quanto não seja ser de amor captivo:
De amor que a lugar alto voe altivo,
E funde a gloria sua em ser ousado;
Que se veja melhor purificado
No immenso resplandor de hum raio esquivo.
Mas ai que tanto amor só pena alcança!
Mais constante ella, e elle mais constante,
De seu triumpho cada qual só trata.
Nada, em fim, me aproveita; que a esperança,
Se anima alguma vez a hum triste amante,
Ao perto vivifica, ao longe mata.
CIII.
Se da célebre Laura a formosura
Hum numeroso cysne ufano escreve,
Huma angelica penna se te deve,
Pois o Ceo em formar-te mais se apura.
E se voz menos alta te procura
Celebrar, (oh Natercia!) em vão se atreve:
De ver-te ja a ventura Liso teve,
Mas de cantar-te falta-lhe a ventura.
No ceo nasceste, certo, e não na terra:
Para gloria do mundo cá desceste:
Quem mais isto negar, muito mais erra.
E eu imagino que de lá vieste
Para emendar os vicios que elle encerra,
Co'os divinos poderes que trouxeste.{53}
CIV.
Esses cabellos louros e escolhidos,
Que o ser ao aureo sol estão tirando;
Esse ar immenso, adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos;
Esses furtados olhos tão fingidos
Que minha vida e morte estão causando;
Essa divina graça, que em fallando
Finge os meus pensamentos não ser cridos;
Esse compasso certo, essa medida
Que faz dobrar no corpo a gentileza;
A divindade em terra, tão subida;
Mostrem ja piedade, e não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
Sendo em mi sofrimento, em vós dureza.
CV.
Quem pudéra julgar de vós, Senhora,
Que huma tal fé pudesse assi perder-vos?
Se por amar-vos chego a aborrecer-vos,
Deixar não posso o amar-vos algum'hora.
Deixais a quem vos ama, ou vos adora,
Por ver a quem quiçá não sabe ver-vos?
Mas eu sou quem não soube merecer-vos,
E esta minha ignorancia entendo agora.
Nunca soube entender vossa vontade,
Nem a minha mostrar-vos verdadeira,
Indaque clara estava esta verdade.
Esta, em quanto eu viver, vereis inteira;
E se em vão meu querer vos persuade,
Mais vosso não querer faz que vos queira.{54}
CVI.
Quem, Senhora, presume de louvar-vos
Com discurso que baixe de divino,
De tanto maior pena será dino,
Quanto vós sois maior ao contemplar-vos.
Não aspire algum canto a celebrar-vos,
Por mais que seja raro, ou peregrino;
Pois de vossa belleza eu imagino
Que só comvosco o Ceo quiz comparar-vos.
Ditosa esta alma vossa, a que quizestes
Pôr em posse de prenda tão subida,
Qual esta que benigna, em fim, me déstes.
Sempre será anteposta á mesma vida:
Esta estimar em menos me fizestes,
Se antes que ess'outra a quero ver perdida.
CVII.
Moradoras gentis e delicadas
Do claro e aureo Tejo, que metidas
Estais em suas grutas escondidas,
E com doce repouso socegadas;
Agora esteis de amores inflammadas,
Nos crystallinos paços entretidas;
Agora no exercicio embevecidas
Das télas de ouro puro matizadas;
Movei dos lindos rostos a luz pura
De vossos olhos bellos, consentindo
Que lagrimas derramem de tristura.
E assi com dor mais propria ireis ouvindo
As queixas que derramo da Ventura,
Que com penas de Amor me vai seguindo.{55}
CVIII.
Brandas águas do Tejo que, passando
Por estes verdes campos que regais,
Plantas, hervas, e flores, e animais,
Pastores, Nymphas, ides alegrando;
Não sei, (ah doces águas!) não sei quando
Vos tornarei a ver; que mágoas tais,
Vendo como vos deixo, me causais,
Que de tornar ja vou desconfiando.
Ordenou o destino, desejoso
De converter meus gostos em pezares,
Partida que me vai custando tanto.
Saudoso de vós, delle queixoso,
Encherei de suspiros outros ares,
Turbarei outras águas com meu pranto.
CIX.
Novos casos de Amor, novos enganos,
Envoltos em lisonjas conhecidas;
Do bem promessas falsas e escondidas,
Onde do mal se cumprem grandes danos;
Como não tomais ja por desenganos
Tantos ais, tantas lagrimas perdidas,
Pois que a vida não basta, nem mil vidas,
A tantos dias tristes, tantos anos?
Hum novo coração mister havia,
Com outros olhos menos aggravados,
Para tornar a crer o que eu vos cria.
Andais comigo, enganos, enganados;
E se o quizerdes ver, cuidai hum dia
O que se diz dos bem acutilados.{56}
CX.
Onde porei meus olhos que não veja
A causa de que nasce o meu tormento?
A qual parte me irei co'o pensamento,
Que para descansar parte me seja?
Ja sei como se engana quem deseja
Em vão amor fiel contentamento;
E que nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.
Mas inda, sôbre o claro desengano,
Assi me traz esta alma sobjugada,
Que delle está pendendo o meu desejo.
E vou de dia em dia, de anno em ano,
Apoz hum não sei que, apoz hum nada,
Que quanto mais me chego, menos vejo.
CXI.
Ja do Mondego as águas apparecem
A meus olhos, não meus, antes alheios,
Que de outras differentes vindo cheios,
Na sua branda vista inda mais crecem.
Parece que tambem forçadas decem,
Segundo se detem em seus rodeios.
Triste! por quantos modos, quantos meios,
As minhas saudades me entristecem!
Vida de tantos males salteada,
Amor a põe em termos, que duvida
De conseguir o fim desta jornada.
Antes se dá de todo por perdida,
Vendo que não vai da alma acompanhada,
Que se deixou ficar onde t~ee vida.{57}
CXII.
Que doudo pensamento he o que sigo?
Apos que vão cuidado vou correndo?
Sem ventura de mi! que não me entendo;
Nem o que callo sei, nem o que digo.
Pelejo com quem trata paz comigo;
De quem guerra me faz não me defendo.
De falsas esperanças que pertendo?
Quem do meu proprio mal me faz amigo?
Porque, se nasci livre, me captivo?
E pois o quero ser, porque o não quero?
Como me engano mais com desenganos?
Se ja desesperei, que mais espero?
E se inda espero mais, porque não vivo?
E se vivo, que accuso mortaes danos?
CXIII.
Hum firme coração posto em ventura;
Hum desejar honesto, que se engeite
De vossa condição, sem que respeite
A meu tão puro amor, a fé tão pura;
Hum ver-vos de piedade e de brandura
Sempre inimiga, faz-me que suspeite
Se alguma Hyrcana fera vos deo leite,
Ou se nascestes de huma pedra dura.
Ando buscando causa, que desculpe
Crueza tão estranha; porém quanto
Nisso trabalho mais, mais mal me trata.
Donde vem, que não ha quem nos não culpe;
A vós, porque matais quem vos quer tanto,
A mim, por querer tanto a quem me mata.{58}
CXIV.
Ar, que de meus suspiros vejo cheio;
Terra, cansada ja com meu tormento;
Agua, que com mil lagrimas sustento;
Fogo, que mais accendo no meu seio;
Em paz estais em mim; e assi o creio,
Sem esse ser o vosso proprio intento;
Pois em dor onde falta o soffrimento,
A vida se sostem por vosso meio.
Ai imiga Fortuna! ai vingativo
Amor! a que discursos por vós venho,
Sem nunca vos mover com minha mágoa!
Se me quereis matar, para que vivo?
E como vivo, se contrarios tenho
Fogo, Fortuna, Amor, Ar, Terra e Agoa?
CXV.
Ja claro vejo bem, ja bem conheço
Quanto augmentando vou o meu tormento;
Pois sei que fundo em água, escrevo em vento,
E que o cordeiro manso ao lobo peço;
Que Arachne sou, pois ja com Pallas teço;
Que a tigres em meus males me lamento;
Que reduzir o mar a hum vaso intento,
Aspirando a esse ceo que não mereço.
Quero achar paz em hum confuso inferno;
Na noite do sol puro a claridade;
E o suave verão no duro inverno.
Busco em luzente Olympo escuridade,
E o desejado bem no mal eterno,
Buscando amor em vossa crueldade.{59}
CXVI.
De cá, donde somente o imaginar-vos
A rigorosa ausencia me consente,
Sôbre as azas de Amor, ousadamente
O mal soffrido esprito vai buscar-vos.
E se não receára de abrazar-vos
Nas chammas que por vossa causa sente,
Lá ficára comvosco e, vós presente,
Aprendêra de vós a contentar-vos.
Mas, pois que estar ausente lhe he forçado,
Por senhora, de cá, vos reconhece,
Aos pés de imagens vossas inclinado.
E pois vêdes a fé que vos offrece,
Ponde os olhos, de lá, no seu cuidado,
E dar-lhe-heis inda mais do que merece.
CXVII.
Não ha louvor que arribe á menor parte
De quanto em vós se vê, bella Senhora:
Vós sois vosso louvor: quem vos adora
Reduz somente a este o engenho e arte.
Quanto por muitas damas se reparte
De bello e de formoso, em vós agora
Se junta em modo tal, que pouco fôra
Dizer que sois o todo, ellas a parte.
Culpa, logo, não he, se vou louvar-vos,
Ver incapazes todos os louvores,
Pois tanto quiz o Ceo avantajar-vos.
Seja a culpa de vossos resplandores;
E a que elles t~ee vos dou, só para dar-vos
O mor louvor de todos os maiores.{60}
CXVIII.
Não vás ao monte, Nise, com teu gado;
Que lá vi que Cupido te buscava:
Por ti somente a todos perguntava,
No gesto menos placido que irado.
Elle publíca, em fim, que lhe has roubado
Os melhores farpões da sua aljava;
E com hum dardo ardente assegurava
Traspassar esse peito delicado.
Fuge de ver-te lá nesta aventura,
Porque se contra ti o tens iroso,
Póde ser que te alcance com mão dura.
Mas ai! que em vão te advirto temeroso,
Se á tua incomparavel formosura
Se rende o dardo seu mais poderoso!
CXIX.
A violeta mais bella que amanhece
No valle por esmalte da verdura,
Com seu pallido lustre e formosura,
Por mais bella, Violante, te obedece.
Perguntas-me porque? Porque apparece
Em ti seu nome, e sua côr mais pura;
E estudar em teu rosto só procura
Tudo quanto em beldade mais florece.
Oh luminosa flor! Oh sol mais claro!
Unico roubador de meu sentido,
Não permittas que Amor me seja avaro.
Oh penetrante setta de Cupido!
Que queres? Que te peça por reparo
Ser neste valle Eneas desta Dido?{61}
CXX.
Tornae essa brancura á alva assucena,
E essa purpurea côr ás puras rosas;
Tornae ao sol as chammas luminosas
De essa vista que a roubos vos condena.
Tornae á suavissima sirena
D'essa voz as cadencias deleitosas:
Tornae a graça ás Graças, que queixosas
Estão de a ter por vós menos serena:
Tornae á bella Venus a belleza;
A Minerva o saber, o engenho, e a arte;
E a pureza á castissima Diana.
Despojae-vos de toda essa grandeza
De dões; e ficareis em toda parte
Comvosco só, que he só ser inhumana.
CXXI.
De mil suspeitas vãas se me levantão
Trabalhos e desgostos verdadeiros.
Ai que estes bens de Amor são feiticeiros,
Que com hum não sei que toda alma encantão!
Como serêas docemente cantão
Para enganar os tristes marinheiros:
Os meus assi me attrahem lisongeiros,
E despois com horrores mil me espantão.
Quando cuido que tomo porto ou terra,
Tal vento se levanta em hum instante,
Que subito da vida desconfio.
Mas eu sou quem me faz a maior guerra,
Pois conhecendo os riscos de hum amante
Fiado a ondas de Amor, dellas me fio.{62}
CXXII.
Mil vezes determino não vos ver,
Por ver se abranda mais o meu penar:
E se cuido de assi me magoar,
Cuidai o que será, se houver de ser.
Pouco me importa ja muito soffrer,
Despois que Amor me poz em tal lugar;
E o que inda me doe mais he só cuidar,
Que mal sem esta dor posso viver.
Assi não busco eu cura contra a dor,
Porque, buscando alguma, entendo bem
Que nesse mesmo ponto me perdi.
Quereis que viva, em fim, neste rigor?
Somente o querer vosso me convem.
Assi quereis que seja? Seja assi.
CXXIII.
A chaga que, Senhora, me fizestes,
Não foi para curar-se em hum só dia;
Porque crescendo vai com tal porfia,
Que bem descobre o intento que tivestes.
De causar tanta dor vos não doestes?
Mas a doer-vos, dor me não sería,
Pois ja com esperança me veria
Do que vós que em mi visse não quizestes.
Os olhos com que todo me roubastes
Forão causa do mal que vou passando;
E vós estais fingindo o não causastes.
Mas eu me vingarei. E sabeis quando?
Quando vos vir queixar porque deixastes
Ir-se a minha alma nelles abrazando.{63}
CXXIV.
Se com desprezos, Nympha, te parece
Que podes desviar do seu cuidado
Hum coração constante, que se offrece
A ter por gloria o ser atormentado.
Deixa a tua porfia, e reconhece
Que mal sabes de amor desenganado;
Pois não sentes, nem vês que em teu mal crece,
Crescendo em mi de ti mais desamado.
O esquivo desamor, com que me tratas,
Converte em piedade, se não queres
Que cresça o meu querer, e o teu desgosto.
Vencer-me com cruezas nunca esperes:
Bem me podes matar, e bem me matas;
Mas sempre ha de viver meu presupposto.
CXXV.
Senhora minha, se eu de vós ausente
Me defendêra de hum penar severo,
Suspeito que offendêra o que vos quero,
Esquecido do bem de estar presente.
Traz este, logo sinto outro accidente,
E he ver que se da vida desespero,
Perco a gloria que vendo-vos espero;
E assi estou em meus males differente.
E nesta differença meus sentidos
Combatem com tão aspera porfia,
Que julgo este meu mal por deshumano.
Entre si sempre os vejo divididos;
E se acaso concordão algum dia,
He só conjuração para meu dano.{64}
CXXVI.
No regaço de mãe Amor estava
Dormindo tão formoso, que movia
O coração que mais isento o via;
E a sua propria mãe de amor matava.
Ella, co'os olhos nelle, contemplava
A quanto estrago o mundo reduzia:
Elle porém, sonhando, lhe dizia
Que todo aquelle mal ella o causava.
Soliso que, graduado em seus amores,
De saber de ambos mais teve a ventura,
Assi soltou a dúvida aos pastores:
Se bem me ferem sempre sem ter cura
Do menino os ardentes passadores,
Mais me fere da mãe a formosura.
CXXVII.
Este terreste caos com seus vapores
Não póde condensar as nuvens tanto,
Que o claro sol não rompa o negro manto
Cum suas bellas e luzentes côres.
A ingratidão esquiva de rigores
Opposta nuvem he, que dura em quanto
Nos não converte o Ceo em triste pranto
Suas vãas esperanças, seus favores.
Póde-se contrapôr ao ceo a terra,
E estar o sol por horas eclipsado;
Mas não póde ficar escurecido.
Póde prevalecer a vossa guerra;
Mas, a pezar das nuvens, declarado
Ha de ser vosso sol, e obedecido.{65}
CXXVIII.
Huma admiravel herva se conhece,
Que vai ao sol seguindo de hora em hora,
Logo que elle do Euphrates se vê fóra,
E quando está mais alto, então florece.
Mas quando ao Oceano o carro dece,
Toda a sua belleza perde Flora,
Porque ella se emmurchece e se descora:
Tanto co'a luz ausente se entristece!
Meu sol, quando alegrais esta alma vossa,
Mostrando-lhe esse rosto que dá vida,
Cria flores em seu contentamento.
Mas logo, em não vos vendo, entristecida
Se murcha e se consume em grão tormento:
Nem ha quem vossa ausencia soffrer possa.
CXXIX.
Crescei, desejo meu, pois que a Ventura
Ja vos t~ee nos seus braços levantado;
Que a bella causa de que sois gerado
O mais ditoso fim vos assegura.
Se aspirais por ousado a tanta altura,
Não vos espante haver ao sol chegado;
Porque he de aguia Real vosso cuidado,
Que quanto mais o soffre, mais se apura.
Ánimo, coração; que o pensamento
Te póde inda fazer mais glorioso,
Sem que respeite a teu merecimento.
Que cresças inda mais he ja forçoso;
Porque se foi de ousado o teu intento,
Agora de atrevido he venturoso.{66}
CXXX.
He o gozado bem em água escrito;
Vive no desejar, morre no effeito:
O desejado sempre he mais perfeito,
Porque t~ee parte alguma de infinito.
Dar a huma alma immortal gôzo prescrito,
Em verdadeiro amor, fôra defeito:
Por modo sup'rior, não imperfeito,
Sois excepção de quanto aqui limito.
De huma esperança nunca conhecida,
Da fé do desejar não alcançada,
Sereis mais desejada, possuida.
Não podeis da esperança ser amada;
Vista podereis ser, e então mais crida;
Porém não, sem aggravo, comparada.
CXXXI.
De quantas graças tinha a natureza
Fez hum bello e riquissimo thesouro;
E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angelica belleza.
Poz na boca os rubis, e na pureza
Do bello rosto as rosas, por quem mouro;
No cabello o valor do metal louro;
No peito a neve, em que a alma tenho accesa.
Mas nos olhos mostrou quanto podia,
E fez delles hum sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.
Em fim, Senhora, em vossa compostura,
Ella a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.{67}
CXXXII.
Nunca em amor damnou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida covardia
De pedra serve ao livre pensamento.
Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A estrella nelle encontra, que lhe he guia;
Que o bem que encerra em si a phantasia
São humas illusões que leva o vento.
Abrir se devem passos á ventura:
Sem si proprio ninguem será ditoso:
Os principios somente a sorte os move.
Atrever-se he valor, e não loucura.
Perderá por covarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.
CXXXIII.
Doces e claras águas do Mondego,
Doce repouso de minha lembrança,
Onde a comprida e perfida esperança
Longo tempo apos si me trouxe cego,
De vós me aparto, si; porém não nego
Que inda a longa memoria, que me alcança,
Me não deixa de vós fazer mudança,
Mas quanto mais me alongo, mais me achego
Bem poderá a Fortuna este instrumento
Da alma levar por terra nova e estranha,
Offerecido ao mar remoto, ao vento.
Mas a alma, que de cá vos acompanha,
Nas azas do ligeiro pensamento
Para vós, águas, vôa, e em vós se banha.{68}
CXXXIV.
Senhor João Lopes, o meu baixo estado
Hontem vi posto em grao tão excellente,
Que sendo vós inveja a toda a gente,
Só por mi vos quizereis ver trocado.
O gesto vi suave e delicado,
Que ja vos fez contente e descontente,
Lançar ao vento a voz tão docemente,
Que fez o ar sereno e socegado.
Vi-lhe em poucas palavras dizer quanto
Ninguem diria em muitas: mas eu chego
A espirar só de ouvir a doce fala.
Oh mal o haja a Fortuna, e o moço cego!
Elle, que os corações obriga a tanto;
Ella, porque os estados desiguala.
CXXXV.
A Morte, que da vida o nó desata,
Os nós, que dá o Amor, cortar quizera
Co'a ausencia, que he sôbre elle espada fera,
E co'o tempo, que tudo desbarata.
Duas contrárias, que huma a outra mata,
A Morte contra Amor junta e altera;
Huma, Razão contra a Fortuna austera;
Outra, contra a Razão Fortuna ingrata.
Mas mostre a sua imperial potencia
A Morte em apartar de hum corpo a alma,
O Amor n'hum corpo duas almas una;
Para que assi triumphante leve a palma
Da Morte Amor a grão pesar da ausencia,
Do tempo, da Razão, e da Fortuna.{69}
CXXXVI
Árvore, cujo pomo bello e brando
Natureza de leite e sangue pinta,
Onde a pureza, de vergonha tinta,
Está virgineas faces imitando;
Nunca do vento a ira, que arrancando
Os troncos vai, o teu injúria sinta;
Nem por malícia de ar te seja extinta
A côr que está teu fructo debuxando.
E pois emprestas doce e idoneo abrigo
A meu contentamento, e favoreces
Com teu suave cheiro a minha gloria;
Se eu não te celebrar como mereces,
Cantando-te, se quer farei comtigo
Doce nos casos tristes a memoria.
CXXXVII.
O filho de Latona esclarecido,
Que com seu raio alegra a humana gente,
Matar pôde a Phytonica serpente
Que mortes mil havia produzido.
Ferio com arco, e de arco foi ferido,
Com ponta aguda de ouro reluzente:
Nas Thessalicas praias docemente
Por a nympha Penea andou perdido.
Não lhe pôde valer contra seu dano
Saber, nem diligencias, nem respeito
De quanto era celeste e soberano.
Pois se hum deos nunca vio nem hum engano
De quem era tão pouco em seu respeito,
Eu qu'espero de hum ser, qu'he mais que humano?{70}
CXXXVIII.
Presença bella, angelica figura,
Em quem quanto o Ceo tinha nos t~ee dado;
Gesto alegre de rosas semeado,
Entre as quaes se está rindo a Formosura:
Olhos, onde t~ee feito tal mistura
Em crystal puro o negro marchetado,
Que vemos ja no verde delicado
Não esperança, mas inveja escura:
Brandura, aviso, e graça, que augmentando
A natural belleza co'hum desprezo,
Com que mais desprezada mais se augmenta:
São as prizões de hum coração, que prêzo,
Seu mal ao som dos ferros vai cantando,
Como faz a serêa na tormenta
CXXXIX.
Por cima destas águas forte e firme
Irei aonde os Fados o ordenárão,
Pois por cima de quantas derramárão
Aquelles claros olhos pude vir-me.
Ja chegado era o fim de despedir-me;
Ja mil impedimentos se acabárão,
Quando rios de amor se atravessárão
A me impedir o passo de partir-me.
Passei-os eu com ânimo obstinado,
Com que a morte forçada gloriosa
Faz o vencido ja desesperado.
Em qual figura, ou gesto desusado,
Póde ja fazer medo a morte irosa
A quem t~ee a seus pés rendido e atado?{71}
CXL.
Tal mostra de si dá vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
Que as fôrças e o poder da natureza
Com sua claridade mais apura.
Quem confiança ha visto tão segura,
Tão singular esmalte da belleza,
Que não padeça mal de mais graveza,
Se resistir a seu amor procura?
Eu, pois, por escusar tal esquivança,
A razão sujeitei ao pensamento,
A quem logo os sentidos se entregárão.
Se vos offende o meu atrevimento,
Inda podeis tomar nova vingança
Nas reliquias da vida que ficárão.
CXLI.
Na desesperação ja repousava
O peito longamente magoado,
E, com seu damno eterno concertado,
Ja não temia, ja não desejava;
Quando huma sombra vãa me assegurava
Que algum bem me podia estar guardado
Em tão formosa imagem, que o traslado
N'alma ficou, que nella se enlevava.
Que credito que dá tão facilmente
O coração áquillo que deseja,
Quando lhe esquece o fero seu destino!
Ah! deixem-me enganar; que eu sou contente;
Pois, postoque maior meu damno seja,
Fica-me a gloria ja do que imagino.{72}
CXLII.
Diversos dões reparte o Ceo benino,
E quer que cada huma alma hum só possua;
Por isso ornou de casto peito a Lua,
Que o primeiro orbe illustra crystallino;
De graça a Mãe formosa do Menino,
Que nessa vista t~ee perdido a sua;
Pallas de sciencia não maior que a tua:
T~ee Juno da nobreza o imperio dino.
Mas junto agora o largo Ceo derrama
Em ti o mais que tinha, e foi o menos
Em respeito do Autor da natureza.
Que a seu pezar te dão, formosa dama,
Seu peito a Lua, sua graça Venos,
Sua sciencia Pallas, Juno sua nobreza.
CXLIII.
Gentil Senhora, se a Fortuna imiga,
Que contra mi com todo o Ceo conspira,
Os olhos meus de ver os vossos tira,
Porque em mais graves casos me persiga;
Comigo levo esta alma, que se obriga
Na mor pressa de mar, de fogo, e d'íra,
A dar-vos a memoria, que suspira
Só por fazer comvosco eterna liga.
Nesta alma, onde a fortuna póde pouco,
Tão viva vos terei, que frio e fome,
Vos não possão tirar, nem mais perigos.
Antes, com som de voz trémulo e rouco
Por vós chamando, só com vosso nome
Farei fugir os ventos, e os imigos.{73}
CXLIV
Que modo tão subtil da natureza
Para fugir ao mundo e seus enganos!
Permitte que se esconda em tenros anos
Debaixo de hum burel tanta belleza!
Mas não póde esconder-se aquella alteza
E gravidade de olhos soberanos,
A cujo resplandor entre os humanos
Resistencia não sinto, ou fortaleza.
Quem quer livre ficar de dor e pena,
Vendo-a ja, ja trazendo-a na memoria,
Na mesma razão sua se condena.
Porque quem mereceo ver tanta gloria
Captivo ha de ficar; que Amor ordena
Que de juro tenha ella esta victoria.
CXLV
Quando se vir com água o fogo arder,
Juntar-se ao claro dia a noite escura,
E a terra collocada lá na altura
Em que se vem os ceos prevalecer;
Quando Amor á Razão obedecer,
E em todos for igual huma ventura,
Deixarei eu de ver tal formosura,
E de a amar deixarei depois de a ver.
Porém não sendo vista esta mudança
No mundo, porque, em fim, não póde ver-se,
Ninguem mudar-me queira de querer-vos.
Que basta estar em vós minha esperança,
E o ganhar-se a minha alma, ou o perder-se,
Para dos olhos meus nunca perder-vos.{74}
CXLVI.
Quando a suprema dor muito me aperta,
Se digo que desejo esquecimento,
He fôrça que se faz ao pensamento,
De que a vontade livre desconcerta.
Assi de êrro tão grave me desperta
A luz do bem regido entendimento,
Que mostra ser engano, ou fingimento,
Dizer que em tal descanso mais se acerta.
Porque essa propria imagem, que na mente
Me representa o bem de que careço,
Faz-mo de hum certo modo ser presente.
Ditosa he, logo, a pena que padeço,
Pois que da causa della em mi se sente
Hum bem que, inda sem ver-vos, reconheço.
CXLVII.
Na margem de hum ribeiro, que fendia
Com liquido crystal hum verde prado,
O triste pastor Liso debruçado
Sôbre o tronco de hum freixo assi dizia:
Ah Natercia cruel! quem te desvia
Esse cuidado teu do meu cuidado?
Se tanto hei de penar desenganado,
Enganado de ti viver queria.
Que foi de aquella fé que tu me déste?
D'aquelle puro amor que me mostraste?
Quem tudo trocar pôde tão asinha?
Quando esses olhos teus n'outro puzeste,
Como te não lembrou que me juraste
Por toda a sua luz que eras só minha?{75}
CXLVIII.
Se me vem tanta gloria só de olhar-te,
He pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de hum engano he desejar-te.
Se aspiro por quem es a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei de offender-te;
Se mal me quero a mi por bem querer-te,
Que premio querer posso mais que amar-te?
Porque hum tão raro amor não me soccorre?
Oh humano thesouro! oh doce gloria!
Ditoso quem á morte por ti corre!
Sempre escrita estaras nesta memoria;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha he a victoria.
CXLIX.
Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assi o pedia o coração,
Quiz Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso póde haver maior!
Novo modo de morte, e nova dor!
Estranheza de grande admiração!
Pois, em fim, seu vigor perde a affeição,
Porque não perca a pena o seu vigor.
Fraqueza, nunca a houve no querer;
Mas antes muito mais se esforça assim
Hum contrário com outro por vencer.
Mas a razão que a luta vence, em fim,
Não creio que he razão; mas deve ser
Inclinação que eu tenho contra mim.{76}
CL.
Coitado! que em hum tempo chóro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me allegro e me entristeço;
Confio de huma cousa e desconfio.
Vôo sem azas; estou cego e guio;
Alcanço menos no que mais mereço;
Entaõ fallo melhor, quando emmudeço;
Sem ter contradiçaõ sempre porfio.
Possivel se me faz todo o impossivel;
Intento com mudar-me estar-me quedo;
Usar de liberdade, e ser captivo;
Queria visto ser, ser invisivel;
Ver-me desenredado, amando o enredo:
Taes os extremos são com que hoje vivo!
CLI.
Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me, tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado,
E de humanos commercios esquecido.
Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quasi que sôbre elle ando dobrado,
Tenho por baixo, rustico, e enganado
Quem não he com meu mal engrandecido.
Vá revolvendo a terra, o mar, e o vento,
Honras busque e riquezas a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma.
Que eu por amor sómente me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso formoso gesto dentro da alma.{77}
CLII.
Olhos, aonde o Ceo com luz mais pura
Quiz dar de seu poder claros signais,
Se quizerdes ver bem quanto possais,
Vêde-me a mi que sou vossa feitura.
Em mi viva vereis vossa figura
Mais propria que em purissimos crystais,
Porque nesta alma he certo que vejais
Melhor que em hum crystal tal formosura.
De meu não quero mais que o meu desejo,
Se acaso por querer-vos mais mereço,
Porque o vosso poder em mi se asselle.
Do mundo outra memoria em mi não vejo:
Com lembrar-me de vós, delle me esqueço,
Com triumphardes de mi, triumpharei delle.
CLIII.
Criou a natureza Damas bellas,
Que forão de altos plectros celebradas;
Dellas tomou as partes mais prezadas,
E a vós, Senhora, fez do melhor dellas.
Ellas diante vós são as estrellas,
Que ficão com vos ver logo eclipsadas.
Mas se ellas t~ee por sol essas rosadas
Luzes de sol maior, felices ellas!
Em perfeição, em graça e gentileza,
Por hum modo entre humanos peregrino,
A todo bello excede essa belleza.
Oh quem tivera partes de divino
Para vos merecer! Mas se pureza
De amor vai ante vós, de vós sou dino.{78}
CLIV.
Que esperais, esperança? Desespéro.
Quem disso a causa foi? H~ua mudança.
Vós, vida, como estais? Sem esperança.
Que dizeis, coração? Que muito quero.
Que sentis, alma, vós? Que amor he fero.
E, em fim, como viveis? Sem confiança.
Quem vos sustenta, logo? Huma lembrança.
E só nella esperais? Só nella espero.
Em que podeis parar? Nisto em que estou.
E em que estais vós? Em acabar a vida.
E ténde-lo por bem? Amor o quer.
Quem vos obriga assi? Saber quem sou.
E quem sois? Quem de todo está rendida.
A quem rendida estais? A hum só querer.
CLV.
Se como em tudo o mais fostes perfeita,
Foreis de condição menos esquiva,
Fôra a minha fortuna mais altiva,
Fôra a sua altiveza mais sujeita.
Mas quando a vida a vossos pés se deita,
Porque não a acceitais, não quer que eu viva:
Ella propria de si ja a mi me priva;
Que, porque me engeitais, tambem me engeita.
Se nisso contradiz vossa vontade,
Mandai-lhe vós, Senhora, que dê fim
Á minha profundissima tristeza.
Pois ella não mo dá, porque piedade
Tenha deste meu mal, mas porque em mim
Possais assi fartar vossa crueza.{79}
CLVI.
Se algum'hora essa vista mais suave
Acaso a mi volveis, em hum momento
Me sinto com hum tal contentamento,
Que não temo que damno algum me aggrave.
Mas quando com desdem esquivo e grave
O bello rosto me mostrais isento,
Huma dor provo tal, hum tal tormento,
Que muito vem a ser que não me acabe.
Assi está minha vida, ou minha morte
No volver de esses olhos; pois podeis
Dar co'huma volta delles morte, ou vida.
Ditoso eu, se o Ceo quer, ou minha sorte,
Que ou vida, para dar-vo-la, me deis,
Ou morte, para haver morte querida!
CLVII.
Tanto se forão, Nympha, costumando
Meus olhos a chorar tua dureza,
Que vão passando ja por natureza
O que por accidente hião passando.
No que ao somno se deve estou velando,
E venho a velar só minha tristeza:
O chôro não abranda esta aspereza,
E meus olhos estão sempre chorando.
Assi de dor em dor, de mágoa em mágoa,
Consumindo-se vão inutilmente,
E esta vida tambem vão consumindo.
Sôbre o fogo de amor inutil ágoa!
Pois eu em chôro estou continuamente,
E do que vou chorando te vás rindo.
Assi nova corrente
Levas de chôro em foro;
Porque de ver-te rir, de novo chóro.{80}
CLVIII.
Eu me aparto de vós, Nymphas do Tejo,
Quando menos temia esta partida;
E se a minha alma vai entristecida,
Nos olhos o vereis com que vos vejo.
Pequenas esperanças, mal sobejo,
Vontade que razão leva vencida,
Presto verão o fim á triste vida,
Se vos não tórno a ver como desejo.
Nunca a noite entretanto, nunca o dia,
Verão partir de mi vossa lembrança:
Amor, que vai comigo, o certifica.
Por mais que no tornar haja tardança,
Me farão sempre triste companhia
Saudades do bem que em vós me fia.
CLIX.
Vencido está de amor Meu pensamento O mais que póde ser, Vencida a vida, Sujeita a vos servir e Instituida, Oferecendo tudo A vosso intento. Contente deste bem Louva o momento, Ou hora em que se vio Tão bem perdida; Mil vezes desejando, Assi ferida, Outras mil renovar Seu perdimento. Com esta pretenção Está segura A causa que me guia Nesta empreza Tão sobrenatural, Honrosa, e alta. Jurando não querer Outra ventura, Votando só por vós Rara firmeza, Ou ser no vosso amor Achado em falta.{81}
CLX.
Divina companhia, que nos prados
Do claro Eurotas, ou no Olympo monte,
Ou sôbre as margens da Castalia fonte
Vossos estudos tendes mais sagrados;
Pois por destino dos immoveis fados
Quereis qu'em vosso número me conte,
No eterno templo de Belorofonte
Ponde em bronze estes versos entalhados:
Soliso (porque em seculos futuros
Se veja da belleza o que merece
Quem de sábia doudice a mente inflama)
Seus escritos, da sorte ja seguros,
A estas aras em h~ua mão offrece,
E a alma em outra á sua bella dama.
CLXI.
Á la margen del Tajo, en claro dia,
Con rayado marfil peinando estaba
Natercia sus cabellos, y quitaba
Con sus ojos la luz al sol que ardia.
Soliso que, cual Clicie, la seguia,
Lejos de sí, mas cerca della estaba:
Al son de su zampoña celebraba
La causa de su ardor, y así decia:
Si tantas, como tú tienes cabellos,
Tuviera vidas yo, me las llevaras
Colgada cada cual del uno dellos.
De no tenerlas tú me consolaras,
Si tantas veces mil, como son ellos,
En ellos la que tengo me enredaras.{82}
CLXII.
Por gloria tuve un tiempo el ser perdido;
Perdíame de puro bien ganado;
Gané cuando perdí ser libertado;
Libre agora me veo, mas vencido.
Vencí cuando de Nise fuí rendido;
Rendíme por no ser della dejado:
Dejóme en la memoria el bien pasado;
Paso agora á llorar lo que he servido.
Servia al premio de la luz que amaba;
Amándola esperábale por cierto;
Incierto me salió cuanto esperaba.
La esperanza se queda en desconcierto;
El concierto en el mal que no pensaba;
El pensamiento con un fin incierto.
CLXIII.
Revuelvo en la incesable fantasía
Cuando me he visto en mas dichoso estado,
Si agora que de Amor vivo inflamado,
Si cuando de su ardor libre vivia.
Entonces desta llama solo huia,
Despreciando en mi vida su cuidado;
Agora, con dolor de lo pasado,
Tengo por gloria aquello que temia.
Bien veo que era vida deleitosa
Aquella que lograba sin temores,
Cuando gustos de Amor tuve por viento.
Mas viendo hoy á Natercia tan hermosa,
Hallo en esta prision glorias mayores,
Y en perderlas por libre hallo tormento.{83}
CLXIV.
Las peñas retumbaban al gemido
Del misero zagal, que lamentaba
El dolor que á su alma lastimaba,
De un obstinado desamor nacido.
El mar, que las batia, su bramido
Con los retumbos dellas ayuntaba;
Confuso son el viento derramaba,
En cavernosos valles repetido.
Responden a mi llanto duras peñas,
Ai de mí! (dijo) la mar brama y gime;
Los ecos suenan de tristeza llenos:
Y tú, por quien la muerte en mí se imprime,
De oir las ansias mias te desdeñas;
Y cuando lloro mas, te abrando menos.
CLXV.
En una selva al dispuntar del dia
Estaba Endimion triste y lloroso,
Vuelto al rayo del sol, que presuroso
Por la falda de un monte descendia.
Mirando al turbador de su alegría,
Contrario de su bien y su reposo,
Tras un suspiro y otro, congojoso,
Razones semejantes le decia:
Luz clara, para mi la mas escura,
Que con esse paseo apresurado,
Mi sol con tu teniebla escureciste;
Si allà pueden moverte en esa altura
Las quejas de un pastor enamorado,
No tardes en volver á dó saliste.{84}
CLXVI.
Orfeo enamorado que tañia
Por la perdida Ninfa que buscaba,
En el Orco implacable donde estaba,
Con la arpa, y con la voz la enternecia.
La rueda de Ixion no se movia,
Ningun atormentado se quejaba;
Las penas de los otros ablandaba,
Y todas las de todos él sentia.
El son pudo obligar de tal manera,
Que en dulce galardon de lo cantado,
Los infernales Reyes condolidos,
Le mandáron volver su compañera,
Y volvióla á perder el desdichado;
Con que fueron entrambos los perdidos.
CLXVII.
Eu cantei ja, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado:
Parece que no canto ja passado
Se estavão minhas lagrimas criando.
Cantei; mas se me alguem pergunta, quando?
Não sei; que tambem fui nisso enganado.
He tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.
Fizerão-me cantar manhosamente
Contentamentos não, mas confianças:
Cantava, mas ja era ao som dos ferros.
De quem me queixarei, se tudo mente?
Porém que culpas ponho ás esperanças,
Onde a fortuna injusta he mais qu'os erros?{85}
CLXVIII.
Ai amiga cruel! que apartamento
He este que fazeis da patria terra?
Ai! quem do amado ninho vos desterra,
Gloria dos olhos, bem do pensamento?
His tentar da fortuna o movimento,
E dos ventos crueis a dura guerra?
Ver brenhas de ondas? feito o mar em serra
Levantado de hum vento e de outro vento?
Mas ja que vós partis, sem vos partirdes,
Parta comvosco o Ceo tanta ventura,
Que se avantaje áquella qu'esperardes.
E só desta verdade ide segura,
Que fazeis mais saudades com vos irdes,
Do que levais desejos por chegardes.
CLXIX.
Campo! nas syrtes deste mar da vida,
Apos naufragios seus taboa segura;
Claras bonanças em tormenta escura,
Habitação da paz, de amor guarida;
A ti fujo: e se vence tal fugida,
E quem mudou lugar, mudou ventura,
Cantemos a victoria; e na espessura
Triumphe a honra da ambição vencida.
Em flor e fructo de verão e outono;
Utilmente murmurão claras ágoas;
Alegre me acha aqui, me deixa o dia.
Amantes rouxinoes rompem-me o sono
Que ata o descanso: aqui sepulto mágoas
Que ja forão sepulcros de alegria.{86}
CLXX.
Ah minha Dinamene! assi deixaste
Quem nunca deixar pôde de querer-te!
Que ja, Nympha gentil, não possa ver-te!
Que tão veloz a vida desprezaste!
Como por tempo eterno te apartaste
De quem tão longe andava de perder-te?
Puderão essas ágoas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?
Nem somente fallar-te a dura morte
Me deixou, qu'apressada o negro manto
Lançar sôbre os teus olhos consentiste.
Oh mar! oh ceo! oh minha escura sorte!
Qual vida perderei que valha tanto,
Se inda tenho por pouco o viver triste?
CLXXI.
Guardando em mi a Sorte o seu direito.
Em verde me cortou minha alegria.
Oh quanto feneceo naquelle dia,
Cuja triste lembrança arde em meu peito!
Quando mais o imagino, bem suspeito
Que a tal bem tal desconto se devia,
Por não dizer o mundo que podia
Achar-se em seus enganos bem perfeito.
Pois se a Fortuna o fez por descontar-me
Aquelle gôsto, em cujo sentimento
A memoria não faz senão matar-me;
Que culpas póde dar-me o pensamento,
Se a causa qu'elle t~ee de atormentar-me,
Tenho eu de soffrer mal o seu tormento?{87}
CLXXII.
Cantando estava hum dia bem seguro,
Quando passava Sylvio, e me dizia:
(Sylvio, pastor antiguo que sabia
Por o canto das aves o futuro)
Liso, quando quizer o fado escuro,
A opprimir-te virão em hum só dia
Dous lobos; logo a voz e a melodia
Te fugirão, e o som suave e puro.
Bem foi assi; porque hum me degolou
Quanto gado vacum pastava e tinha,
De que grandes soldadas esperava.
E por mais damno o outro me matou
A cordeira gentil, qu'eu tanto amava,
Perpétua saudade da alma minha.
CLXXIII.
O ceo, a terra, o vento socegado,
As ondas que se estendem por a areia,
Os peixes que no mar o somno enfreia,
O nocturno silencio repousado;
O Pescador Aonio que, deitado
Onde co'o vento a água se meneia,
Chorando, o nome amado em vão nomeia,
Que não póde ser mais que nomeado,
Ondas, (dizia) antes que Amor me mate,
Tornae-me a minha Nympha, que tão cedo
Me fizestes á morte estar sujeita.
Ninguem responde; o mar de longe bate;
Move-se brandamente o arvoredo;
Leva-lhe o vento a voz, qu'ao vento deita.{88}
CLXXIV.
Ah Fortuna cruel! ah duros Fados!
Quão asinha em meu damno vos mudastes!
Com os vossos cuidados me cansastes,
E agora descansais co'os meus cuidados.
Fizestes-me provar gostos passados,
E vossa condição nelles provastes:
Singelos em hum'hora mos levastes,
Deixando em seu lugar males dobrados.
Quanto melhor me fôra que não vira
Os doces bens de Amor? Ah bens suaves!
Quem me deixa sem vós, porque me deixa?
De queixar-te, alma minha, te retira:
Alma, de alto cahida em penas graves,
Pois tanto amaste em vão, em vão te queixa.
CLXXV.
Quanto tempo, olhos meus, com tal lamento
Vos hei de ver tão tristes e aggravados?
Não bástão meus suspiros inflammados,
Que sempre em mi renovão seu tormento?
Não basta consentir meu pensamento
Em mágoas, em tristezas e em cuidados,
Senão que haveis de andar tão maltratados,
Que lagrimas tenhais por mantimento?
Não sei porque tomais esta vingança,
Mostrando-vos na ausencia tão saudosos,
Se sabeis quanto póde huma esperança.
Olhos, não aggraveis outros formosos,
Tornando hum puro amor em esquivança,
Pois ficais por esquivos desdenhosos.{89}
CLXXVI.
Lembranças, que lembrais o bem passado
Para que sinta mais o mal presente,
Deixae-me, se quereis, viver contente,
Morrer não me deixeis em tal estado.
Se de todo, comtudo, está do Fado,
Que eu morra de viver tão descontente,
Venha-me todo o bem por accidente,
E todo o mal me venha por cuidado.
Que muito melhor he perder-se a vida,
Perdendo-se as lembranças da memoria,
Pois fazem tanto damno ao pensamento.
Porque, em fim, nada perde quem perdida
A esperança t~ee ja daquella gloria
Que fazia suave o seu tormento.
CLXXVII.
Quando os olhos emprégo no passado,
De quanto passei me acho arrependido;
Vejo que tudo foi tempo perdido,
Que tudo emprêgo foi mal empregado.
Sempre no mais damnoso mais cuidado;
Tudo o que mais cumpria, mal cumprido;
De desenganos menos advertido
Fui, quando de esperanças mais frustrado.
Os castellos que erguia o pensamento,
No ponto que mais altos os erguia,
Por esse chão os via em hum momento.
Que erradas contas faz a phantasia!
Pois tudo pára em morte, tudo em vento,
Triste o que espera! triste o que confia!{90}
CLXXVIII
Ja cantei, ja chorei a dura guerra
Por Amor sustentada longos anos;
Vezes mil me vedou dizer seus danos,
Por não ver quem o segue o muito que erra.
Nymphas, por quem Castalia se abre e cerra;
Vós que fazeis á morte mil enganos,
Concedei-me ja alentos soberanos
Para que diga o mal que Amor encerra:
Para que aquelle, que o seguir ardente,
Veja em meus puros versos hum exemplo
De quanto em glorias promettidas mente.
Qu'inda qu'em triste estado me contemplo,
Se neste assumpto me inspirais, contente
Darei a minha lyra ao vosso templo.
CLXXIX
Os meus alegres, venturosos dias
Passárão, como raio, brevemente;
Movem-se os tristes mais pezadamente
Apos das fugitivas alegrias.
Ah falsas pretenções! vãas phantasias!
Que me podeis ja dar que me contente?
Ja de meu triste peito a chamma ardente
O tempo reduzio a cinzas frias.
Nellas revolvo agora erros passados;
Que outro fructo não deo a mocidade,
A quem vergonha e dor minha alma deve
Revolvo mais de toda a mais idade,
Desejos vãos, vãos choros, vãos cuidados,
Para que leve tudo o tempo leve.{91}
CLXXX.
Horas breves de meu contentamento,
Nunca me pareceo, quando vos tinha,
Que vos visse mudadas tão asinha
Em tão compridos annos de tormento.
As altas tôrres, que fundei no vento,
Levou, em fim, o vento que as sostinha:
Do mal, que me ficou, a culpa he minha,
Pois sôbre cousas vãas fiz fundamento.
Amor com brandas mostras apparece,
Tudo possivel faz, tudo assegura;
Mas logo no melhor desapparece.
Estranho mal! estranha desventura!
Por hum pequeno bem que desfallece,
Hum bem aventurar, que sempre dura!
CLXXXI.
Onde acharei lugar tão apartado,
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?
Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitaria, triste e escura,
Sem fonte clara, ou placida verdura;
Em fim, lugar conforme a meu cuidado?
Porque alli nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente.
Que, pois a minha pena he sem medida,
Alli não serei triste em dias ledos,
E dias tristes me farão contente.{92}
CLXXXII.
Aqui de longos damnos breve historia
Verão os que se jactão de amadores:
Reparo póde ser das suas dores
Não apartar as minhas da memoria.
Escrevi, não por fama, nem por gloria,
De que outros versos são merecedores,
Mas por mostrar seus triumphos, seus rigores
A quem de mi logrou tanta victoria.
Crescendo foi a dor co'o tempo, tanto
Que em número me fez, alheio de arte,
Dizer do cego Amor, que me venceo.
Se ao canto dei a voz, dei a alma ao pranto;
E dando a penna á mão, esta só parte
De minhas tristes penas escreveo.
CLXXXIII.
Por sua Nympha Céphalo deixava
A Aurora, que por elle se perdia,
Postoque dá principio ao claro dia,
Postoque as roxas flores imitava.
Elle, que a bella Procris tanto amava,
Que só por ella tudo engeitaria,
Deseja de tentar se lhe acharia
Tão firme fé, como ella nelle achava.
Mudado o trage, tece hum duro engano;
Outro se finge, preço põe diante;
Quebra-se a fé mudavel, e consente.
Oh subtil invenção para seu dano!
Vêde que manhas busca hum cego amante
Para que sempre seja descontente!{93}
CLXXXIV.
Sentindo-se alcançada a bella esposa
De Céphalo no crime consentido,
Para os montes fugia do marido;
E não sei se de astuta, ou vergonhosa.
Porque elle, em fim, soffrendo a dor ciosa,
Da cegueira obrigado de Cupido,
Apos ella se vai como perdido,
Ja perdoando a culpa criminosa.
Deita-se aos pés da Nympha endurecida,
Que do cioso engano está aggravada;
Ja lhe pede perdão, ja pede a vida.
Oh fôrça d'affeição desatinada!
Que da culpa contr'elle commettida,
Perdão pedia á parte que he culpada!
CLXXXV.
Seguia aquelle fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
Quebravão-lhe ondas o animoso alento,
Por mais e mais que Amor lho renovava.
Com sentir ja que quasi lhe faltava,
Sem nada esmorecer, no pensamento
(Não podendo fallar) de seu intento
O fim ao surdo mar encommendava.
Ó mar, (dizia o moço só comsigo)
Ja te não peço a vida; só queria
Que a d'Hero me salvasses: não me veja:
Este defunto corpo lá o desvia
D'aquella tôrre: sê-me nisto amigo,
Pois no meu maior bem me houveste inveja.{94}
CLXXXVI.
Os olhos onde o casto Amor ardia,
Ledo de se ver nelles abrazado;
O rosto onde com lustre desusado
Purpurea rosa sôbre neve ardia;
O cabello, que inveja ao sol fazia,
Porque fazia o seu menos dourado;
A branca mão, o corpo bem talhado,
Tudo aqui se reduz a terra fria.
Perfeita formosura em tenra idade,
Qual flor, que antecipada foi colhida,
Murchada está da mão da morte dura.
Como não morre Amor de piedade?
Não della, que se foi á clara vida;
Mas de si, que ficou em noute escura.
CLXXXVII.
Ditosa penna, como a mão que a guia
Com tantas perfeições da subtil arte,
Que quando com razão venho a louvar-te,
Em teus louvores perco a phantasia.
Porém Amor, que effeitos varios cria,
De ti cantar me manda em toda parte,
Não em plectro belligero de Marte,
Mas em suave e branda melodia.
Teu nome, Emmanuel, de hum n'outro pólo,
Voando se levanta e te pregoa,
Agora que ninguem te levantava.
E porque immortal sejas, eis Apolo
Te offerece de flores a coroa,
Que ja de longo tempo te guardava.{95}
CLXXXVIII.
Espanta crescer tanto o crocodilo
Só por seu limitado nascimento;
Que, se maior nascêra, mais isento
Estivera de espanto o patrio Nilo.
Em vão levantará meu baixo estilo
Vosso Pontifical, novo ornamento;
Pois no ventre o immortal merecimento
Vo-lo talhou, para despois vesti-lo.
Tardou, mas veio; que a quem mais merece
Vir o premio mais tarde he sempre certo,
Inda que vez alguma venha cedo.
Os ceos, que do primeiro estão mais perto,
Mais devagar se movem. Quem conhece,
Sôbre aquelle segredo, este segredo!
CLXXXIX.
Ornou sublime esfôrço ao grande Atlante,
Com qu'a celeste máchina sustenta;
Honrou a Homero o engenho, com que intenta
Grecia do quarto ceo passá-lo avante;
Coroou claro Amor de amor constante
A Orpheo, na paz firme e na tormenta;
Inspirou a Fortuna, em tudo isenta,
A Cesar, de quem foi hum tempo amante;
Exaltaste tu, Fama, a gloria alta
De Alcides lá no monte em que resides;
Mas Castro, em quem o Ceo seus dões derrama,
Mais orna, honra, coroa, inspira, exalta,
Que Atlante, Homero, Orpheo, Cesar e Alcides,
Esfôrço, engenho, Amor, Fortuna e Fama.{96}
CXC.
Despois que vio Cibele o corpo humano
Do formoso Atys seu verde pinheiro,
Em piedade o vão furor primeiro
Convertido, chorava o grave dano.
E, á sua dor fazendo illustre engano,
A Jupiter pedio, que o verdadeiro
Preço da nobre palma e do loureiro
Ao seu pinheiro désse, soberano.
Mais lhe concede o filho poderoso
Que, crescendo, as estrellas tocar possa,
Vendo os segredos lá do ceo superno.
Oh ditoso pinheiro! oh mais ditoso
Quem se vir coroar da rama vossa,
Cantando á vossa sombra verso eterno!
CXCI.
Pois torna por seu Rei e juntamente
Por Christo a governar aquella parte
Onde se t~ee mostrado hum Numa, hum Marte
O famoso Luis, justo e valente;
O Tejo espere ver de todo o Oriente,
Onde tão raros dões o Ceo reparte,
Render a tanto esfôrço, aviso e arte,
Mil palmas, mil tributos novamente.
Os que bebem no Gange, os que no Indo,
A quem pouco valêrão lança e escudo,
O render-se terão por bom partido.
O Euphrates temerá, seu nome ouvindo;
Que para delle ver vencido tudo,
Ja vio do braço seu tudo vencido.{97}
CXCII.
Agora toma a espada, agora a pena,
Estacio nosso, em ambas celebrado,
Sendo, ou no salso mar de Marte amado,
Ou n'água doce amante da Camena.
Cysne sonoro por ribeira amena
De mi para cantar-te he cobiçado;
Porque não podes tu ser bem cantado
De ruda frauta, nem de agreste avena.
Se eu, que a penna tomei, tomei a espada,
Para poder jogar licença tenho
Desta alta influïção de dous Planetas;
Com huma e outra luz delles lograda,
Tu com pujante braço, ardente engenho,
Serás pharo a Soldados e a Poetas.
CXCIII.
Erros meus, ma Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjurárão:
Os erros e a Fortuna sobejárão;
Que para mi bastava Amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas, que passárão,
Que ja as frequencias suas me ensinárão
A desejos deixar de ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De Amor não vi senão breves enganos.
Oh quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Genio de vinganças!{98}
CXCIV.
Cá nesta Babylonia donde mana
Materia a quanto mal o mundo cria;
Cá donde o puro Amor não t~ee valia;
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá donde o mal se affina, o bem se dana,
E póde mais que a honra a tyrannia;
Cá donde a errada e cega Monarchia
Cuida que hum nome vão a Deos engana;
Cá neste labyrintho onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Ás portas da Cobiça e da Vileza;
Cá neste escuro caos de confusão
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
CXCV.
Correm turbas as águas deste rio,
Que as rapidas enchentes enturbárão;
Os florecidos campos se seccárão;
Intratavel se fez o valle e frio.
Passou, como o verão, o ardente estio;
Humas cousas por outras se trocárão:
Os fementidos fados ja deixárão
Do mundo o regimento, ou desvario.
Ja o tempo a ordem sua t~ee sabida;
O mundo não; mas anda tão confuso,
Que parece que delle Deos se esquece.
Casos, opiniões, natura, e uso,
Fazem que nos pareça desta vida
Que não ha nella mais do que parece.{99}
CXCVI.
Vós outros, que buscais repouso certo
Na vida, com diversos exercicios;
A quem, vendo do mundo os beneficios,
O regimento seu fica encoberto;
Dedicae, se quereis, ao Desconcêrto
Novas honras e cegos sacrificios;
Que, por castigo igual de antiguos vicios,
Quer Deos que andem as cousas por acêrto.
Não cahio neste modo de castigo
Quem poz culpa á Fortuna, quem somente
Crê que acontecimentos ha no mundo.
A grande experiencia he grão perigo:
Mas o que a Deos he justo e evidente
Parece injusto aos homens e profundo.
CXCVII.
Para se namorar do que criou,
Te fez Deos, sacra Phenix, Virgem pura.
Vêde que tal seria esta feitura
Que para si o seu Feitor guardou!
No seu alto conceito te formou
Primeiro que a primeira criatura,
Para que unica fosse a compostura
Que de tão longo tempo se estudou.
Não sei se digo em tudo quanto baste
Para exprimir as raras qualidades
Que quiz criar em ti quem tu criaste.
Es Filha, Mãe, e Esposa: e se alcançaste
Huma só, tres tão altas dignidades,
Foi porqu'a Tres de Hum só tanto agradaste.{100}
CXCVIII.
Desce do ceo immenso Deos benino
Para encarnar na Virgem soberana.
Porque desce o divino a cousa humana?
Para subir o humano a ser divino.
Pois como vem tão pobre e tão menino,
Rendendo-se ao poder da mão tyrana?
Porque vem receber morte inhumana
Para pagar de Adão o desatino.
He possivel que os dous o fructo comem
Que de quem lhes deo tanto foi vedado?
Si; porque o proprio ser de deoses tomem.
E por esta razão foi humanado?
Si; porque foi com causa decretado,
Se quiz o homem ser Deos, que Deos fosse homem.
CXCIX.
Dos ceos á terra desce a mor Belleza,
Une-se á nossa carne, e a faz nobre;
E, sendo a humanidade d'antes pobre,
Hoje subida fica á mor riqueza.
Busca o Senhor mais rico a mor pobreza;
Que, como ao mundo o seu amor descobre,
De palhas vis o corpo tenro cobre,
E por ellas o mesmo ceo despreza.
Como? Deos em pobreza á terra dece?
O qu'he mais pobre tanto lhe contenta,
Qu'este somente rico lhe parece.
Pobreza este Presepio representa;
Mas tanto por ser pobre ja merece,
Que quanto mais o he, mais lhe contenta.{101}
CC.
Porque a tamanhas penas se offerece
Por o peccado alheio, e êrro insano,
O Trino Deos? Porque o sogeito humano
Não póde co'o castigo que merece.
Quem padecerá as penas que padece?
Quem soffrerá deshonra, morte e dano?
Quem será, se não for o Soberano
Que reina, e servos manda, e obedece?
Foi a fôrça do homem tão pequena,
Que não pôde soster tanta aspereza,
Pois não sosteve a Lei que Deos ordena.
Mas soffre-a aquella immensa Fortaleza
Por amor puro; que a mortal fraqueza
Foi para o êrro, e não ja para a pena.
CCI.
Despois de haver chorado os meus tormentos,
Quer Amor que lhe cante as suas glorias.
Canto de huma belleza os vencimentos,
De hum longo padecer chóro as memorias.
Porém, se as minhas penas são victorias,
Por a causa, a meus altos pensamentos;
Dilatem-se em larguissimas historias
Estes meus gloriosos rendimentos.
Mova-se em todo o mundo unico espanto
De qu'he, por a belleza qu'eu adoro,
Do que cantado tenho premio o pranto.
Contente offreço a amor tão triste foro:
Que se chôro não ha como o meu canto,
Não sei canto melhor qu'este meu chôro.{102}
CCII.
Onde mereci eu tal pensamento
Nunca de ser humano merecido?
Onde mereci eu ficar vencido
De quem tanto me honrou co'o vencimento?
Em gloria se converte o meu tormento,
Quando vendo-me estou tão bem perdido;
Pois não foi tanto mal ser atrevido,
Como foi gloria o mesmo atrevimento.
Vivo, Senhora, só de contemplar-vos;
E pois esta alma tenho tão rendida,
Em lagrimas desfeito acabarei.
Porque não me farão deixar de amar-vos
Receios de perder por vós a vida;
Que por vós vezes mil a perderei.
CCIII.
De frescas belvederes rodeadas
Estão as puras águas desta fonte;
Formosas Nymphas lhes estão defronte,
A vencer e a matar acostumadas.
Andão contra Cupido levantadas
As suas graças, que não ha quem conte:
D'outro valle esquecidas, d'outro monte,
A vida passão neste socegadas.
O seu poder juntou, sua valia
Amor, ja não soffrendo este desprêzo,
Somente por se ver dellas vingado;
Mas, vendo-as, entendeo que não podia
De ser morto livrar-se, ou de ser prêzo,
E ficou-se com ellas desarmado.{103}
CCIV.
Nos braços de hum Sylvano adormecendo
Se estava aquella Nympha qu'eu adoro,
Pagando com a boca o doce foro,
Com que os meus olhos foi escurecendo.
Oh bella Venus! porqu'estás soffrendo
Que a maior formosura do teu côro
Em hum poder tão vil perca o decoro
Que o merito maior lhe está devendo?
Eu levarei daqui por presupposto
Desta nova estranheza que fizeste,
Que em ti não póde haver cousa segura.
Que, pois o claro lume, o bello rosto
Áquelle monstro tão disforme déste,
Não creio qu'haja Amor, senão Ventura.
CCV.
Quem diz que Amor he falso, ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel, ou rigoroso,
Amor he brando, he doce, e he piedoso:
Quem o contrário diz não seja crido;
Seja por cego e apaixonado tido,
E aos homens, e inda aos deoses odioso.
Se males faz Amor, em mi se vem;
Em mi mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quiz mostrar quanto podia.
Mas todas suas iras são d'Amor;
Todos estes seus males são hum bem,
Qu'eu por todo outro bem não trocaria.{104}
CCVI.
Formosa Beatriz, tendes taes geitos
N'hum brando revolver dos olhos bellos,
Que só no contemplá-los, se não ve-los,
Se inflammão corações e humanos peitos.
Em toda perfeição são tão perfeitos,
Que o desengano dão de merecê-los:
Não póde haver quem possa conhecê-los,
Sem nelle Amor fazer grandes effeitos.
Sentirão, por meu mal, tão graves danos
Os meus, que com os ver cegos e tristes
Ficarão sem prazer, co'a luz perdida.
Mas ja que vós com elles me feristes,
Tornai-me a ver com elles mais humanos,
E deixareis curada esta ferida.
CCVII.
Alegres campos, verdes, deleitosos,
Suaves me serão vossas boninas,
Em quanto forem vistas das meninas
Dos olhos de Ignez bella tão formosos.
Dos meus, que vos serão sempre invejosos
Por não verem estrellas tão divinas,
Sereis regados d'águas peregrinas,
Soprados de suspiros amorosos.
E vós, douradas flores, por ventura
Se Ignez quizer fazer de meus amores
Exp'riencias na folha derradeira,
Mostrai-lhe, para ver minha fé pura,
O bem que sempre quiz, formosas flores;
Qu'então não sentirei que mal me queira.{105}
CCVIII.
Ondados fios de ouro, onde enlaçado.
Continuamente tenho o pensamento;
Que quanto mais vos sólta o fresco vento,
Mais preso fico então de meu cuidado;
Amor, d'huns bellos olhos sempre armado,
Me combate co'as fôrças do tormento,
Provando da minha alma o soffrimento
Que á justa lei da paz trago obrigado.
Assi que em vosso gesto mais que humano
Amo a paz juntamente e o perigo;
E em amar hum e outro não me engano.
Muitas vezes dizendo estou comigo
Que, pois he tal a causa de meu dano,
He justa a guerra, he justa a paz que sigo.
CCIX.
Amor, que em sonhos vãos do pensamento
Paga o zêlo maior de seu cuidado,
Em toda condição, em todo estado,
Tributario me fez de seu tormento.
Eu sirvo, eu canso; e o grão merecimento
De quanto tenho a Amor sacrificado,
Nas mãos da ingratidão despedaçado
Por prêza vai do eterno esquecimento.
Mas quando muito, em fim, cresça o perigo,
A que perpetuamente me condena
Amor, que amor não he, mas inimigo;
Tenho hum grande descanso em minha pena,
Que a gloria do querer, que tanto sigo,
Não póde ser co'os males mais pequena.{106}
CCX.
Nem o tremendo estrépito da guerra
Com armas, com incendios espantosos
Que despachão pelouros perigosos,
Bastantes a abalar huma alta serra,
Podem pôr medo a quem nenhum encerra,
Despois que vio os olhos tão formosos,
Por quem o horror nos casos pavorosos
De mi todo se aparta e se desterra,
A vida posso ao fogo e ferro dar,
E perdê-la em qualquer duro perigo,
E nelle, como phenix, renovar.
Não póde mal haver para comigo,
De qu'eu ja me não possa bem livrar,
Senão do que me ordena Amor imigo.
CCXI.
Fiou-se o coração, de muito isento,
De si, cuidando mal que tomaria
Tão illicito amor, tal ousadia,
Tal modo nunca visto de tormento.
Mas os olhos pintárão tão a tento
Outros que vistos t~ee na phantasia,
Que a razão, temerosa do que via,
Fugio, deixando o campo ao pensamento.
Ó Hippolyto casto, que de geito
De Phedra tua madrasta foste amado,
Que não sabia ter nenhum respeito;
Em mi vingou Amor teu casto peito:
Mas está deste aggravo tão vingado,
Que se arrepende ja do que t~ee feito.{107}
CCXII.
Quem quizer ver d'amor huma excellencia
Onde sua fineza mais se apura,
Attente onde me põe minha ventura,
Porque de minha fé faça exp'riencia.
Onde lembranças mata a larga ausencia,
Em temeroso mar, em guerra dura,
A saudade alli'stá mais segura,
Quando risco maior corre a paciencia.
Mas ponha-me a Fortuna e o duro Fado,
Em morte, ou nojo, ou damno, ou perdição,
Ou em sublime e próspera ventura;
Ponha-me, em fim, em baixo ou alto estado;
Que até na dura morte me acharão
Na lingua o nome, e n'alma a vista pura.
CCXIII.
Los ojos que con blando movimiento
Al pasar enternecen la alma mia,
Si detener pudiera solo un dia,
Pudiera bien libraria de tormento.
Deste tan amoroso sentimiento
El importuno mal se acabaria;
Ó tambien su accidente creceria
Para acabar la vida en un momento.
Oh! si ya tu esquivez me permitiese
Que al ver, o Ninfa, tu semblante hermoso,
A manos de tus ojos yo muriese!
Oh si los detuvieras! cuan dichoso
Seria aquel momento en que me viese
Vida en ellos cobrar, cobrar reposo!{108}
CCXIV.
No bastaba que amor puro y ardiente
Por términos la vida me quitase;
Mas que la muerte así se apresurase
Con un deshumanisimo accidente?
No pretendió mi alma, aunque lo siente,
Que el riguroso curso se atajase,
Porque nunca morir se exprimentase
Desamado el que amó tan dulcemente.
Mas vuestra voluntad tan poderosa
Con esas gracias vuestras ordenaron
Crueldad asi imposible, ó nunca oída.
Aquel frio desden, y la amorosa
Furia, de un golpe solo, me quitaron
Con dós contrarias muertes una vida.
CCXV.
Ayudame, Señora, á hacer venganza
De tal selvatiquez, de tal rudeza,
Pues de mi poquedad, de mi bajeza
Osado á ti elevaba la esperanza.
Á esa tu perfeccion, que no se alcanza,
Á esas sublimes cumbres de belleza,
Donde una vez llegó naturaleza,
Mas de volver perdió la confianza.
Aquello que en ti miro contemplando,
(Que apenas contemplarlo me consiente)
Contemplándolo mas, menos lo espero.
Si gloria de mi pena en ti se siente,
Derrama en mí tus iras, desamando;
Que al ofenderme mas yo mas te quiero.{109}
CCXVI.
O claras águas deste blando rio,
Que en vos al natural estais pintando
El frondífero adorno con que alzando
Se vá á los cielos este bosque umbrio;
Así las lluvias, así el Austro frio
Jamás puedan veniros enturbiando,
Que os vais del seco estio preservando
Con socorreros deste llanto mio.
Y cuando en vos Marfisa se mirare,
Mi figura, cual veis desfallecida,
Ante sus claros ojos puesta sea.
Y si por mí de vos los apartare,
De verme alli mostrándose ofendida,
En pena de no verme no se vea.
CCXVII.
Mil veces entre sueños tu figura,
O bella Ninfa, claramente veo;
Y cuando mas la miro, mas deseo
Gozar libre de sueños su hermosura.
En tanto que este dulce engaño dura,
Vivo en la vana gloria que poseo:
Mas cuanto allí se eleva mi deseo,
Viene a caer despierto en sombra escura.
Duéleme el despertar por contemplarte;
Que si bien sé te huelgas de no verme,
Huélgome de ser ciego por mirarte.
Mas si quiero de engaños mantenerme,
Y tú quieres me pierda por amarte,
Sin gran ganancia no podré perderme.{110}
CCXVIII.
Mi gusto y tu beldad se desposaron,
Terceros por mi mal mis ojos fueron:
Su logro ha sido tal, que, alfin, hicieron
Un hijo hermoso á quien amor llamaron.
Tan fuera de compás le regalaron,
Que cuando mas alegres estuvieron,
Sin entender el mal que produjeron,
Perdidos por amores se miraron.
La beldad desposada deste duelo,
Vino á parir un monstro con dós alas;
La madre es la soberbia, el niño el zelo.
Oh madre que á tu hijo en todo igualas!
Quien mortal hace al inmortal abuelo,
Y al padre mortal da inmortales zalas?
CCXIX.
Si el fuego que me enciende, consumido
De algun mas suelto Aquario ser pudiese;
Si el alto suspirar me convertiese
En aire por el aire desparcido;
Si un horrible rumor siendo sentido,
La alma á dejar el cuerpo redujese;
Ó por estos mis ojos al mar fuese
Este mi cuerpo en llanto convertido;
Nunca podria la fortuna airada,
Com todos sus horrores, sus espantos,
Derrocar la alma mia de su gloria.
Porque en vuestra beldad ya transformada,
Ni del Estigio lago eternos llantos
Os podrian quitar de mi memoria.{111}
CCXX.
Que me quereis perpétuas saudades?
Com qu'esperanças inda me enganais?
O tempo, que se vai, não torna mais,
E se torna, não tornão as idades.
Razão he ja, ó annos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos para hum gôsto sois iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.
Aquillo a que ja quiz he tão mudado,
Que quasi he outra cousa; porque os dias
T~ee o primeiro gôsto ja damnado.
Esperanças de novas alegrias,
Não m'as deixa a Fortuna e o tempo irado,
Que do contentamento são espias.
CCXXI.
Oh rigorosa ausencia desejada
De mi sempre, mas nunca conhecida!
Saudade, n'outro tempo tão temida,
Como em meu damno agora exprimentada!
Ja rigorosamente começada
Tendes vossa esperança em minha vida;
Mas tanto, que ja temo que opprimida
Sejais com ella cedo, ou acabada.
Os dias mais alegres me entristecem;
As noites, com cuidados as desconto,
Em que sem vós sem conto me parecem.
Eu desejando espero, e os annos conto;
Mas com a vida, em fim, elles fallecem:
Nem basta á carne enfêrma esprito pronto.{112}
CCXXII.
Ay! quien dará á mis ojos una fuente
De lágrimas que manen noche y dia?
Respirara si quiera la alma mia,
Llorando lo pasado, y lo presente.
Quien me diera apartado de la gente,
De mi dolor siguiendo la porfia
Con la triste memoria y fantasia
Del bien por quien mal tanto así se siente!
Quien me dará palabras con que iguale
El duro agravio que el amor me ha hecho,
Donde tan poco el sufrimiento vale?
Quien me abrirá profundamente el pecho,
Dó está escrito el secreto que no sale,
Con tanto dolor mio, á mi despecho?
CCXXIII.
Con razon os vais, aguas, fatigando
Por llegar dó sereis bien recebidas;
Y en aquel mar inmenso convertidas,
Que ya de tantos dias vais buscando.
Triste de aquel que siempre anda llorando
Las vanas esperanzas ya perdidas,
Y con dolor las lágrimas vertidas
Nunca al fin pretendido van llegando!
Vosotras sin traer derecha via,
Al término llegais tan deseado,
Por mas que os embarace el gran rodeo;
Mas yo siempre afligido noche y dia,
Por un camino, que no llevo errado,
Jamás puedo llegar donde deseo.{113}
CCXXIV.
Oh cese ya, Señor, tu dura mano!
No llegues tanto al cabo con mi vida;
Baste el estar por ti tan consumida,
Que ya no se halla en ella lugar sano.
Ay estraña hermosura! ay deshumano
Hado, á que nunca puedo hallar salida!
Si tú de tu piedad no eres movida,
Roto el hilo vital verás temprano.
Un blando desamor, un amor blando,
Bien basta para un hombre tan perdido,
Que de su mal ningun remedio espera.
Y si estimas en poco el ver cual ando,
Aqui me tienes ante ti rendido:
Viva tu gusto, mi esperanza muera.
CCXXV.
Dulces engaños de mis ojos tristes,
Cuan vivo despertais mi pensamiento!
Aquello que pudiera dar contento,
En sombra de pintura lo volvistes.
De blando sobresalto enternecistes
Con vista arrebatada el sentimiento;
Mas no le asegurastes un momento
Aqueste vano bien que le ofrecistes.
Veo que la figura era fingida,
Y no aquella que en sí mi alma esconde,
Aunque en esto se llega al natural:
Así escucha mi llanto, así responde,
Así se condolece de mi vida,
Como si fuera el propio original.{114}
CCXXVI.
Cuanto tiempo ha que lloro un dia triste,
Como si alguno alegre yo esperara?
Como, o Tajo, al pasar esa tu clara
Agua, no la alteraste, y no me hundiste?
El paso me cerraste, el pecho abriste,
O mi ventura, de mi bien avara!
Á Dios, montañas de hermosura rara;
Á Dios, mi corazon, que no partiste.
Si adonde quedas en dichosa suerte
No bebieres las aguas del olvido,
En tanto bien no quieras olvidarme.
Cantando mi dolor llora mi muerte;
Porque hasta el hueco monte sin sentido
Suelta su ronca voz por consolarme.
CCXXVII.
Levantai, minhas Tagides, a frente,
Deixando o Tejo ás sombras nemorosas;
Dourai o valle umbroso, as frescas rosas,
E o monte com as árvores frondente.
Fique de vós hum pouco o rio ausente,
Cessem agora as lyras numerosas,
Cesse vosso lavor, Nymphas formosas,
Cesse da fonte vossa a grã corrente.
Vinde a ver a Theodosio grande e claro,
A quem 'stá offrecendo maior canto
Na cithara dourada o louro Apolo.
Minerva do saber dá-lhe o dom raro,
Pallas lhe dá o valor de mais espanto,
E a Fama o leva ja de pólo a pólo.{115}
CCXXVIII.
Vós, Nymphas da Gangetica espessura,
Cantae suavemente, em voz sonora,
Hum grande Capitão que a roxa Aurora
Dos filhos defendeo da noite escura.
Ajuntou-se a caterva negra e dura,
Que na Aurea Chersoneso affouta mora,
Para lançar do charo ninho fóra
Aquelles que mais podem que a ventura.
Mas hum forte leão, com pouca gente,
A multidão tão fera como necia,
Destruindo castiga e torna fraca.
Ó Nymphas, cantai, pois; que claramente
Mais do que Leonidas fez em Grecia,
O nobre Leoniz fez em Malaca.
CCXXIX.
Alma gentil, que á firme eternidade
Subiste clara e valerosamente,
Cá durará de ti perpetuamente
A fama, a gloria, o nome e a saudade.
Não sei se he mor espanto em tal idade
Deixar de teu valor inveja á gente,
Se hum peito de diamante, ou de serpente,
Fazeres que se mova a piedade.
Invejosa da tua acho mil sortes,
E a minha mais que todas invejosa,
Pois ao teu mal o meu tanto igualaste.
Oh ditoso morrer! sorte ditosa!
Pois o que não se alcança com mil mortes,
Tu com huma só morte o alcançaste.{116}
CCXXX.
Debaixo desta pedra sepultada
Jaz do mundo a mais nobre formosura,
A quem a morte, só de inveja pura,
Sem tempo sua vida t~ee roubada,
Sem ter respeito áquella assi estremada
Gentileza de luz, que a noite escura
Tornava em claro dia; cuja alvura
Do sol a clara luz tinha eclipsada.
Do sol peitada foste, cruel morte,
Para o livrar de quem o escurecia;
E da lua, que ante ella luz não tinha.
Como de tal poder tiveste sorte?
E se a tiveste, como tão asinha
Tornaste a luz do mundo em terra fria?
CCXXXI.
Imagens vãas me imprime a phantasia;
Discursos novos acha o pensamento;
Com que dão á minha alma grão tormento
Cuidados de cem annos n'hum só dia.
Se fim grande tivessem, bem sería
Responder a esperança ao fundamento:
Mas o fado não corre tão a tento,
Que reserve á razão sua valia.
Caso e Fortuna pódem acertar;
Mas se por accidente dão victoria,
Sempre o favor da Fama he falsa historia.
Excede ao saber, determinar:
Á constancia se deve toda a gloria:
O ânimo livre he digno de memoria.{117}
CCXXXII.
Quanta incerta esperança, quanto engano!
Quanto viver de falsos pensamentos!
Pois todos vão fazer seus fundamentos
Só no mesmo em qu'está seu proprio dano.
Na incerta vida estribão de hum humano;
Dão credito a palavras que são ventos;
Chórão despois as horas e os momentos,
Que rírão com mais gôsto em todo o ano.
Não haja em apparencias confianças;
Entendei que o viver he de emprestado;
Que o de que vive o mundo são mudanças.
Mudai, pois, o sentido e o cuidado,
Somente amando aquellas esperanças
Que durão para sempre com o amado.
CCXXXIII.
Mal, que de tempo em tempo vás crescendo,
Quem te visse de hum bem acompanhado!
A vida passaria descansado,
Da morte não temêra o rosto horrendo.
Se os vãos cuidados fôra convertendo
Em suspiros que dão outro cuidado,
Oh quão prudente, oh quão affortunado
A capella do louro irá tecendo!
Tempo he ja de esquecer contentamentos
Passados, co'a esperança que passou,
E de que triumphem novos pensamentos.
A fé, que viva n'alma me ficou,
Dê ja fim aos caducos ardimentos
A que o passado bem se condemnou.{118}
CCXXXIV.
Oh quanto melhor he o supremo dia
Da mansa morte, que o do nascimento!
Oh quanto melhor he hum só momento,
Que livra de annos tantos de agonia!
De alcançar outro bem cesse a porfia;
Cesse todo applicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento,
Pois só contenta ao corpo a terra fria.
O que do seu fez Deos seu despenseiro,
T~ee mais estreita conta que lhe dar:
Então parece rico o ovelheiro.
Triste de quem no dia derradeiro
T~ee o suor alheio por pagar,
Pois a alma ha de vender por o dinheiro!
CCXXXV.
Como podes (oh cego peccador!)
Estar em teus errores tão isento,
Sabendo que esta vida he hum momento,
Se comparada com a eterna for?
Não cuides tu que o justo Julgador
Deixará tuas culpas sem tormento,
Nem que passando vai o tempo lento
Do dia de horrendíssimo pavor.
Não gastes horas, dias, mezes, anos,
Em seguir de teus damnos a amisade
De que despois resultão mores danos.
E pois de teus enganos a verdade
Conheces, deixa ja tantos enganos,
Pedindo a Deos perdão com humildade.{119}
CCXXXVI.
Verdade, Amor, Razão, Merecimento,
Qualquer alma farão segura e forte;
Porém Fortuna, Caso, Tempo, e Sorte,
T~ee do confuso mundo o regimento.
Effeitos mil revolve o pensamento,
E não sabe a que causa se reporte:
Mas sabe que o que he mais que vida e morte
Não se alcança de humano entendimento.
Doctos varões darão razões subidas;
Mas são as exp'riencias mais provadas:
E por tanto he melhor ter muito visto.
Cousas ha hi que passão sem ser cridas:
E cousas cridas ha sem ser passadas.
Mas o melhor de tudo he crer em Christo.
CCXXXVII.
De Babel sôbre os rios nos sentámos,
De nossa doce patria desterrados,
As mãos na face, os olhos derribados,
Com saudades de ti, Sião, chorámos.
Os orgãos nos salgueiros pendurámos,
Em outro tempo bem de nós tocados;
Outro era elle, por certo, outros cuidados;
Mas por deixar saudades os deixâmos.
Aquelles que captivos nos trazião
Por cantigas alegres perguntavão:
Cantai (nos dizem) hymnos de Sião.
Sôbre tal pena, pena tal nos dão,
Pois tyranicamente pretendião
Que cantassem aquelles que choravão.{120}
CCXXXVIII.
Sôbre os rios do Reino escuro, quando
Tristes, quaes nossas culpas o ordenárão,
Lagrimas nossos olhos derramárão,
Por ti, Sião divina, suspirando,
Os que hião nossas almas infestando,
De contino em error, as captivárão;
E em vão por nossos Psalmos perguntárão;
Que tudo era silencio miserando.
Dizendo estamos: Como cantaremos
As acceitas canções a Deos benino,
Quando a contrarios seus obedecemos?
Mas ja, Senhor só Santo, determino,
Deixando viciosissimos extremos,
Os cantos proseguir de Amor Divino.
CCXXXIX.
Em Babylonia sôbre os rios, quando
De ti, Sião sagrada, nos lembrámos,
Alli com grã saudade nos sentámos,
O bem perdido, miseros, chorando.
Os instrumentos musicos deixando,
Nos estranhos salgueiros pendurámos,
Quando aos cantares, que ja em ti cantámos,
Nos estavão imigos incitando.
Ás esquadras dizemos inimigas:
Como hemos de cantar em terra alhea
As cantigas de Deos, sacras cantigas?
Se a lembrança eu perder que me recrea
Cá nestas penosissimas fadigas,
Oblivioni detur dextra mea.{121}
CCXL.
Aponta a bella Aurora, luz primeira,
Que a grã nova nos deo do claro dia:
Vesti-vos, corações, ja de alegria,
E recebei da vida a Mensageira.
Da humana Redempção nasce a Terceira:
Alegra-te, Divina Monarchia;
Da terra terás cedo a companhia,
Do ceo verás tambem a nossa feira.
De tal obra se espanta a natureza,
Confuso fica de temor o inferno,
Vendo a que nasce isenta da defeza.
Lei geral era posta desde eterno;
Mas o Senhor da Lei toda limpeza
Para o Sacrario seu guardou Materno.
CCXLI.
Porque a terra no ceo agasalhasse,
O ceo na terra Deos agasalhou:
Lá não cabendo, cá se accommodou,
Porque lá, de cá indo, se alargasse.
Porqu'o homem a ser Deos por Deos chegasse,
Por o homem a ser homem Deos chegou:
Seu divino poder tanto humanou,
Porque o humano em divino se tornasse.
Vêde bem o que deo e recebeo:
Não se perca hum bem tanto da memoria:
Deo-nos a vida, a morte padeceo.
Trocou por nossa pena a sua gloria;
Deo-nos o triumpho qu'elle mereceo;
Porque amor foi auctor desta victoria.{122}
CCXLII.
Qu'estilla a Arvore sacra? Hum licor santo.
Para quem? Para o genero he humano.
Que faz delle? Hum remedio soberano.
Para que? Para a culpa e triste pranto.
E que obra? Reduzir Lusbel a espanto.
Porque? Porque co'hum pomo fez grão dano.
Que foi? A morte deo com hum engano.
Tanto pôde? Sem falta pôde tanto.
Quem sobe a ella? Quem do ceo desceo.
A que desce? A subir a creatura.
Que quiz da terra? Só levá-la ao Ceo.
He escada para ir lá? E a mais segura.
Quem o obrigou? De amor só se venceo.
Que amava este Feitor? Sua feitura.
CCXLIII.
Oh Arma unicamente só triumphante,
Propugnaculo só de nossas vidas,
Por quem forão ganhadas as perdidas
Com que o Tartaro horrendo andava ovante!
Sigua-se esta bandeira militante
Por quem são taes victorias conseguidas,
Por quantas almas, della divertidas,
No Ponente errão cá, lá no Levante.
Oh Arvore sublime, e marchetada
De branco e carmesi, de ouro embutida,
Dos rubis mais preciosos esmaltada,
E de trophéos mais claros guarnecida!
Á vida a morte vimos em ti dada,
Para qu'em ti se désse á morte a vida.{123}
CCXLIV.
Aos homens hum só homem poz espanto,
E o poz a toda a humana natureza;
Que de homem teve o ser, de Anjo a pureza,
Porqu'antes que nascesse era ja Santo.
Propheta foi na Mãe; em fim, foi tanto,
Qu'entre os nascidos houve a mor alteza;
Que da Luz, sem a ver, vio a grandeza,
Tendo por trompa o Verbo Sacrosanto.
Aquella voz foi elle sonorosa,
No concavo dos Orbes resonante,
E que a Carne inculpavel baptizou;
Quem do mor Pae ouvio a voz amante;
Quem a subtil pergunta industriosa
Com sincera resposta socegou.
CCXLV.
Vós só podeis, sagrado Evangelista,
Angelico abrazado Seraphim,
E na sciencia mais alto Cherubim,
Do que he mais sabio Amor ser Coronista.
Divina e real Aguia, cuja vista
Vio o qu'he sem princípio, o qu'he sem fim,
De Jacob mais querido Benjamim,
Quem mais campêa de Joseph na lista.
Apostolo, e Propheta, e Patriarca,
Ao Principe dos Ceos o mais acceito,
Qu'em seu seio dormindo então mais via.
A quem o mesmo Deos por irmão marca;
Quem por filho da Mãe unica feito,
Em corpo e alma goza o claro dia.{124}
CCXLVI.
Como louvarei eu, Seraphim santo,
Tanta humildade, tanta penitencia,
Castidade, e pobreza, e paciencia,
Com este meu inculto e rudo canto?
Argumento que ás Musas põe espanto,
Que faz muda a grandiloqua eloquencia.
Oh imagem, qu'a Divina Providencia
De si viva em vós fez para bem tanto!
Fostes de Santos huma rara mina;
Almas de mil a mil ao ceo mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.
E não roubaveis só com a doutrina
As vontades mortaes, mas a Divina;
Pois os seus rubis cinco lhe roubastes.
CCXLVII.
Ditosas almas, que ambas juntamente
Ao ceo de Venus e de Amor voastes,
Onde hum bem que tão breve cá lograstes,
Estais logrando agora eternamente;
Aquelle estado vosso tão contente,
Que só por durar pouco triste achastes,
Por outro mais contente ja o trocastes,
Onde sem sobresalto o bem se sente.
Triste de quem cá vive tão cercado,
Na amorosa fineza, de hum tormento
Que a gloria lhe perturba mais crescida!
Triste, pois me não val o soffrimento,
E Amor para mais damno me t~ee dado
Para tão duro mal tão larga vida!{125}
CCXLVIII.
Contente vivi ja, vendo-me isento
Deste mal de que a muitos queixar via:
Chamão-lhe amor; mas eu lhe chamaria
Discordia e semrazão, guerra e tormento.
Enganou-me co'o nome o pensamento:
(Quem com tal nome não se enganaria?)
Agora tal estou, que temo hum dia
Em que venha a faltar-me o soffrimento.
Com desesperação, e com desejo
Me paga o que por elle estou passando,
E inda está do meu mal mal satisfeito.
Pois sôbre tantos damnos inda vejo
Para dar-me outros mil hum olhar brando,
E para os não curar hum duro peito.
CCXLIX.
Deixa Apollo o correr tão apressado,
Não sigas essa Nympha tão ufano:
Não te leva o amor, leva-te o engano
Com sombras de algum bem a mal dobrado.
E quando seja amor, será forçado;
E se forçado for, será teu dano.
Hum parecer não queiras mais que humano
Em hum sylvestre adôrno ver tornado.
Não percas por hum vão contentamento
A vista que te faz viver contente;
Modera em teu favor o pensamento.
Porque menos mal he, tendo-a presente,
Soffrer sua crueza, e teu tormento,
Que sentir sua ausencia eternamente.{126}
CCL.
Nas Cidades, nos bosques, nas florestas,
Nos valles, e nos montes, teus louvores
Sempre te cantem musicos pastores
Nas manhãas frias, nas ardentes sestas.
E neste Templo donde manifestas
E repartes agora teus favores,
Com Psalmos, hymnos, e com varias flores
Sejão celebres sempre as tuas festas.
Estes te offreção pés, ess'outros mãos;
D'aquelles pendão sôbre os teus altares
Monstros do mar, de servidão prisões.
Que eu cuidados, enganos e affeições,
Muito maiores monstros, e milhares
Te deixo aqui de pensamentos vãos.
CCLI.
Vi queixosos de Amor mil namorados,
E nenhuns inda vi com seus louvores;
E aquelle que mais chora o mal de amores,
Vejo menos fugir de seus cuidados.
Se das dores de Amor sois mal tratados,
Porque tanto buscais de Amor as dores?
E se tambem as tendes por favores,
Porque dellas fallais como aggravados?
Não queirais alegria achar alg~ua
No Amor, porque he composto de tristeza,
Na fortuna que acheis mais agradavel.
Nella e nelle achei sempre a mesma l~ua,
Em quem nunca se vio outra firmeza,
Que não seja a de ser sempre mudavel.{127}
CCLII.
Se lagrimas choradas de verdade
O marmore abrandar podem mais duro,
Porque as minhas que nascem de amor puro
Hum coração não rendem a piedade?
Por vós perdi, Senhora, a liberdade,
E nem da propria vida estou seguro.
Rompei desse rigor o forte muro,
Não passe tanto avante a crueldade.
Ao prezar de desprezos dae ja fim:
Não vos chamem cruel; nome devido
A quem se ri de quem suspira e ama.
Abrandai esse peito endurecido,
Por o que toca a vós, ja não por mim,
Que eu aventuro a vida, e vós a fama.
CCLIII.
Ja me fundei em vãos contentamentos,
Quando delles vivi todo enganado
De hum phantastico bem, e de hum cuidado,
De que só cuidão cegos pensamentos.
Passava dias, horas e momentos,
Deste enleio de amores tão pagado,
Que tinha só por bem-aventurado
Quem só por elles mais bebia os ventos.
Mas agora que ja cahi na conta,
Desengana-me quanto me enganava;
Que tudo o tempo dá, tudo descobre.
O Amor mais caudaloso menos monta.
Qu'he de gostos mais rico, eu ignorava,
Aquelle que de amores he mais pobre.{128}
CCLIV.
Em huma lapa toda tenebrosa,
Adonde bate o mar com furia brava,
Sôbre h~ua mão o rosto, vi qu'estava
Huma Nympha gentil, mas cuidadosa.
Igualmente que linda, lastimosa,
Aljofar dos seus olhos distillava:
O mar os seus furores applacava
Com ver cousa tão triste e tão formosa.
Alguma vez na horrivel penedia
Os bellos olhos punha com brandura,
Bastante a desfazer sua dureza.
Com angelica voz assi dizia:
Ah! que falte mais vezes a ventura
Onde sobeja mais a natureza!
CCLV.
Se em mim, ó alma, vive mais lembrança
Que aquella só da gloria de querer-vos,
Eu perca todo o bem que lógro em ver-vos,
E de ver-vos tambem toda a esperança.
Veja-se em mi tão rustica esquivança,
Que possa indigno ser de conhecer-vos;
E, quando em mor empenho de aprazer-vos,
Vos offenda, se em mi houver mudança.
Confirmado estou ja nesta certeza:
Examine-me vossa crueldade,
Exprimente-se em mi vossa dureza.
Conhecei ja de mi tanta verdade;
Pois em penhor e fé desta pureza
Tributo vos fiz ser o que he vontade.{129}
CCLVI.
Ilustre Gracia, nombre de una moza,
Primera malhechora en este caso
Á Mondoñedo, á Palma, al cojo Traso,
Sugeto digno de immortal coroza;
Si en medio de la Iglesia no reboza
El manto á vuestro rostro tan devaso,
Por vos dirán las gentes recio y paso:
Veis quien con el demonio se retoza.
Puede mover los montes sin trabajo;
Con palabras el curso al agua enfrena;
Por las ondas hará camino enjuto.
Averguenza su patria y rico Tajo,
Que por ella hombres lleva, mas que arena,
De que paga al infierno gran tributo.
CCLVII.
Qual t~ee a borboleta por costume,
Qu'enlevada na luz da acesa vella,
Dando vai voltas mil, até que nella
Se queima agora, agora se consume:
Tal eu correndo vou ao vivo lume
D'esses olhos gentis, Aonia bella;
E abrazo-me, por mais que com cautella
Livrar-me a parte racional presume.
Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;
Porém não quer Amor que lhe resista,
Nem a minh'alma o quer; qu'em tal tormento,
Qual em gloria maior está contente.{130}
CCLVIII.
Lembranças de meu bem, doces lembranças
Que tão vivas estais nesta alma minha,
Não queirais mais de mi, se os bens que tinha
Em poder vêdes todos de mudanças.
Ai cego Amor! ai mortas esperanças
De qu'eu em outro tempo me matinha!
Agora deixareis quem vos sostinha;
Acabarão co'a vida as confianças.
Co'a vida acabarão, pois a ventura
Me roubou n'hum momento aquella gloria,
Que, quando tão grande he, tão pouco dura.
Oh se apoz o prazer fôra a memoria!
Ao menos estivera a alma segura
De ganhar-se com ella mais victoria.
CCLIX.
Formosos olhos, que cuidado dais
Á mesma luz do sol mais clara e pura;
Que sua esclarecida formosura,
Com tanta gloria vossa, atraz deixais;
Se por serdes tão bellos desprezais
A fineza de amor que vos procura,
Pois tanto vêdes, vêde que não dura
O vosso resplandor quanto cuidais.
Colhei, colhei do tempo fugitivo
E de vossa belleza o doce fruto;
Qu'em vão fóra de tempo he desejado.
E a mi, que por vós morro, e por vós vivo,
Fazei pagar a Amor o seu tributo,
Contente de por vós lho haver pagado.{131}
CCLX.
Pues siempre sin cesar, mais ojos tristes,
En lágrimas tratais la noche el dia,
Mirad si es lágrima esta que os envia
Aquel sol por quien vos tantas vertistes.
Si vos me asegurais, pues ya la vistes,
Que es lágrima, será ventura mia;
Por empleadas bien desde hoy tendria
Las muchas que por ella sola distes.
Mas cualquier cosa mucho deseada,
Aunque viendo se esté, nunca es creida;
Y menos esta, nunca imaginada.
Pero della aseguro, si es fingida,
Que basta ser por lágrima enviada,
Para que sea por lágrima tenida.
CCLXI.
T~ee feito os olhos neste apartamento
Hum mar de saudosa tempestade,
Que póde dar saudade á saudade,
Sentimentos ao proprio sentimento.
Em dor vai convertido o soffrimento,
Em pena convertida a piedade;
A razão tão vencida da vontade,
Qu'escravo faz do mal o entendimento.
A lingua não alcança o qu'a alma sente.
E assi, se alguem quizer em algum'hora
Saber que cousa he dor não comprehendida,
Parta-se do seu bem, porque exprimente
Qu'antes de se partir, melhor lhe fôra
Partir-se do viver para ter vida.{132}
CCLXII.
A peregrinação d'hum pensamento,
Que dos males fez hábito e costume,
Tanto da triste vida me consume,
Quanto cresce na causa do tormento.
Leva a dor de vencida ao soffrimento;
Mas a alma está, de entregue, tão sem lume,
Qu'enlevada no bem que haver presume,
Não faz caso do mal qu'está de assento.
De longe receei (se me valêra)
O perigo que tanto á porta vejo,
Quando não acho em mi cousa segura.
Mas ja conheço, (oh nunca o conhecêra!)
Qu'entendimentos presos do desejo
Não t~ee remedio mais que o da ventura.
CCLXIII.
Acho-me da fortuna salteado;
O tempo vai fugindo presuroso,
Deixando-me da vida duvidoso,
E cada instante mais desesperado.
Trocou-se o meu descuido em tal cuidado,
Que donde a gloria he mais, he mais penoso.
Nem vivo de perder-me receoso,
Nem de poder ganhar-me confiado.
Qualquer ave nos montes mais agrestes,
Qualquer fera na cova repousando,
T~ee horas de alegria: eu todas tristes.
Vós, saudosos olhos, que o quizestes,
(Pois com tormento Amor me está pagando)
Chorai, como que vêdes, o que vistes.{133}
CCLXIV.
Se no que tenho dito vos offendo,
Não he a intenção minha de offender-vos;
Qu'inda que não pretenda merecer-vos,
Não vos desmerecer sempre pretendo.
Mas he meu fado tal, segundo entendo,
Que, por quanto ganhava em entender-vos,
Não me deixa atégora conhecer-vos,
Por a mi proprio m'ir desconhecendo.
Os dias ajudados da ventura
A cada qual de si dão desenganos,
E a outros soe da-lo a desventura.
Qual destas sirva a mi, dirão os danos
Ou gostos que eu tiver, em quanto dura
Esta vida, tão larga em poucos anos.
CCLXV.
Doce contentamento ja passado,
Em que todo o meu bem só consistia,
Quem vos levou de minha companhia,
E me deixou de vós tão apartado?
Quem cuidou que se visse neste estado
Naquellas breves horas d'alegria,
Quando minha ventura consentia
Que d'enganos vivesse meu cuidado?
Fortuna minha foi cruel e dura
Aquella que causou meu perdimento,
Com a qual ninguem póde ter cautella.
Nem se engane nenhuma creatura;
Que não póde nenhum impedimento
Fugir o que lh'ordena sua estrella.{134}
CCLXVI.
Sempre, cruel Senhora, receei,
Medindo vossa grã desconfiança,
Que désse em desamor vossa tardança,
E que me perdesse eu, pois vos amei.
Perca-se, em fim, ja tudo o qu'esperei,
Pois n'outro amor ja tendes esperança.
Tão patente será vossa mudança,
Quanto eu encobri sempre o que vos dei.
Dei-vos a alma, a vida e o sentido;
De tudo o qu'em mi ha vos fiz senhora.
Prometteis, e negais o mesmo Amor.
Agora tal estou, que de perdido,
Não sei por onde vou, mas algum'hora
Vos dará tal lembrança grande dor.
CCLXVII.
Se a fortuna inquieta e mal olhada,
Que a justa lei do Ceo comsigo infama,
A vida quieta, qu'ella mais dasama,
Me concedêra honesta e repousada;
Pudéra ser que a Musa, alevantada
Com luz de mais ardente e viva flama,
Fizera ao Tejo lá na patria cama
Adormecer co'o som da lyra amada.
Porém, pois o destino trabalhoso,
Que m'escurece a Musa fraca e lassa,
Louvor de tanto preço não sustenta;
A vossa, de louvar-me pouco escassa,
Outro sogeito busque valeroso,
Tal qual em vós ao mundo se apresenta.{135}
CCLXVIII.
Este amor, que vos tenho limpo e puro,
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado,
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.
D'haver nelle mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso, ou duro fado,
Nem o supremo bem, ou baixo estado,
Nem o tempo presente, nem futuro.
A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o inverno e estio deita;
Só para meu amor he sempre Maio.
Mas ver-vos para mim, Senhora, escassa,
E qu'essa ingratidão tudo me engeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.
CCLXIX.
A formosura desta fresca serra,
E a sombra dos verdes castanheiros,
O manso caminhar destes ribeiros,
Donde toda a tristeza se desterra;
O rouco som do mar, a estranha terra,
O esconder do sol pelos outeiros,
O recolher dos gados derradeiros,
Das nuvens pelo ar a branda guerra:
Em fim, tudo o que a rara natureza
Com tanta variedade nos offrece,
M'está (se não te vejo) magoando.
Sem ti tudo me enoja, e me aborrece;
Sem ti perpetuamente estou passando
Nas mores alegrias môr tristeza.{136}
CCLXX.
Sustenta meu viver huma esperança
Derivada de hum bem tão desejado,
Que quando nella estou mais confiado,
Mor dúvida me põe qualquer mudança.
E quando inda este bem na mór pujança
De seus gostos me t~ee mais enlevado,
Me atormenta então ver eu qu'alcançado
Será por quem de vós não t~ee lembrança.
Assi que, nestas redes enlaçado,
A penas dou a vida, sustentando
Huma nova materia a meu cuidado.
Suspiros d'alma tristes arrancando,
Dos silvos d'huma pedra acompanhado,
Estou materias tristes lamentando.
CCLXXI.
Ja não sinto, Senhora, os desenganos,
Com que minha affeição sempre tratastes,
Nem ver o galardão, que me negastes,
Merecido por fé ha tantos anos.
A mágoa chóro só, só chóro os danos
De ver por quem, Senhora, me trocastes;
Mas em tal caso vós só me vingastes
De vossa ingratidão, vossos enganos.
Dobrada gloria dá qualquer vingança,
Que o offendido toma do culpado,
Quando se satisfaz com causa justa;
Mas eu de vossos males e esquivança,
De que agora me vejo bem vingado,
Não a quizera tanto á vossa custa.{137}
CCLXXII.
Quando, Senhora, quiz Amor qu'amasse
Essa grã perfeição e gentileza,
Logo deo por sentença, que a crueza
Em vosso peito amor accrescentasse.
Determinou, que nada me apartasse,
Nem desfavor cruel, nem aspereza;
Mas qu'em minha rarissima firmeza
Vossa isenção cruel se executasse.
E, pois tendes aqui offerecida
Est'alma vossa a vosso sacrificio,
Acabai de fartar vossa vontade.
Não lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
Acabará morrendo em seu officio,
Sua fé defendendo e lealdade.
CCLXXIII.
Eu vivia de lagrimas isento,
N'hum engano tão doce e deleitoso,
Qu'em qu'outro amante fosse mais ditoso
Não valião mil glorias hum tormento.
Vendo-me possuir tal pensamento,
De nenhuma riqueza era invejoso;
Vivia bem, de nada receoso,
Com doce amor e doce sentimento.
Cobiçosa a Fortuna, me tirou
Deste meu tão contente e alegre estado;
E passou-se este bem, que nunca fôra:
Em trôco do qual bem só me deixou
Lembranças, que me mátão cada hora,
Trazendo-me á memoria o bem passado.{138}
CCLXXIV.
Indo o triste pastor todo embebido
Na sombra de seu doce pensamento,
Taes queixas espalhava ao leve vento,
Co'hum brando suspirar d'alma sahido:
A quem me queixarei, cego, perdido,
Pois nas pedras não acho sentimento?
Com quem fallo? A quem digo meu tormento?
Que onde mais chamo, sou menos ouvido.
Ó bella Nympha, porque não respondes?
Porque o olhar-me tanto m'encareces?
Porque queres que sempre me querelle?
Eu quanto mais te busco, mais te escondes!
Quanto mais mal me vês, mais te endureces!
Assim que co'o mal cresce a causa delle.
CCLXXV.
Dizei, Senhora, da belleza idêa,
Para fazerdes esse aureo crino,
Onde fostes buscar esse ouro fino?
De qu'escondida mina ou de que vêa?
Dos vossos olhos essa luz Phebêa,
Esse respeito, de hum Imperio dino?
Se o alcançastes com saber divino,
Se com encantamentos de Medéa?
De qu'escondidas conchas escolhestes
As perlas preciosas Orientais,
Que fallando mostrais no doce riso?
Pois vos formastes tal, como quizestes,
Vigiai-vos de vós, não vos vejais,
Fugi das fontes; lembre-vos Narciso.{139}
CCLXXVI.
Na ribeira do Euphrates assentado,
Discorrendo me achei pela memoria
Aquelle breve bem, aquella gloria,
Que em ti, doce Sião, tinha passado.
Da causa de meus males perguntado
Me foi: Como não cantas a historia
De teu passado bem, e da victoria
Que sempre de teu mal has alcançado?
Não sabes, que a quem canta se lhe esquece
O mal, indaque grave e rigoroso?
Canta pois, e não chores dessa sorte.
Respondi com suspiros: Quando crece
A muita saudade, o piedoso
Remedio he não cantar, senão a morte.
CCLXXVII.
Chorai, Nymphas, os fados poderosos
Daquella soberana formosura.
Onde forão parar? na sepultura?
Aquelles Reaes olhos graciosos?
Oh bens do mundo falsos e enganosos!
Que mágoas para ouvir! Que tal figura
Jaza sem resplandor na terra dura
Com tal rosto e cabellos tão formosos!
Das outras que será! pois poder teve
A morte sôbre cousa tanto bella,
Que ella eclipsava a luz do claro dia.
Mas o mundo não era digno della,
Por isso mais na terra não esteve,
Ao ceo subio, que ja se lhe devia.{140}
CCLXXVIII.
Senhora ja desta alma, perdoae
De hum vencido de Amor os desatinos,
E sejão vossos olhos tão beninos
Com este puro amor, que d'alma sae.
A minha pura fé sómente olhae,
E vêde meus extremos se são finos;
E se de alguma pena forem dinos,
Em mim, Senhora minha, vos vingae.
Não seja a dor que abraza o triste peito
Causa por onde pene o coração,
Que tanto em firme amor vos he sujeito.
Guardae-vos do que alguns, dama, dirão,
Que sendo raro em tudo vosso objeito,
Possa morar em vós ingratidão.
CCLXXIX.
Doce sonho, suave e soberano,
Se por mais longo tempo me durára!
Ah quem de sonho tal nunca acordára,
Pois havia de ver tal desengano!
Ah deleitoso bem! ah doce engano!
Se por mais largo espaço me enganára!
Se então a vida misera acabára,
De alegria e prazer morrêra ufano.
Ditoso, não estando em mi, pois tive
Dormindo o que acordado ter quizera.
Olhae com que me paga meu destino!
Em fim, fóra de mim ditoso estive.
Em mentiras ter dita razão era,
Pois sempre nas verdades fui mofino.{141}
CCLXXX.
Diana prateada, esclarecida
Com a luz que do claro Phebo ardente,
Por ser de natureza transparente,
Em si, como em espelho, reluzia,
Cem mil milhões de graças lhe influia,
Quando me appareceo o excellente
Raio de vosso aspecto, diferente
Em graça e em amor do que sohia.
Eu vendo-me tão cheio de favores,
E tão propinquo a ser de todo vosso,
Louvei a hora clara, e a noite escura,
Pois nella déstes côr a meus amores:
Donde collijo claro que não posso
De dia para vós ja ter ventura.
CCLXXXI.
Em quanto Phebo os montes accendia
Do ceo com luminosa claridade,
Por conservar illesa a castidade
Na caça o tempo Delia despendia.
Venus, qu' então de furto descendia
Por captivar de Anchises a vontade,
Vendo Diana em tanta honestidade,
Quasi zombando della, lhe dizia:
Tu vás com tuas redes na espessura
Os fugitivos cervos enredando;
Mas as minhas enredão o sentido.
Melhor he (respondia a deosa pura)
Nas redes leves cervos ir tomando,
Que tomar-te a ti nellas teu marido.{142}
CCLXXXII.
N'hum tão alto lugar, de tanto preço,
Este meu pensamento posto vejo,
Que desfallece nelle inda o desejo,
Vendo quanto par mi o desmereço.
Quando esta tal baixeza em mi conheço,
Acho que cuidar nelle he grão despejo,
E que morrer por elle me he sobejo
E mór bem para mi, do que mereço.
O mais que natural merecimento
De quem me causa hum mal tão duro e forte,
O faz que vá crescendo de hora em hora.
Mas eu não deixarei meu pensamento,
Porque inda qu'este mal me causa a morte,
Un bel morir tutta la vita honora.
CCLXXXIII.
Quantas penas, Amor, quantos cuidados,
Quantas lagrimas tristes sem proveito,
De que mil vezes olhos, rosto e peito,
Por ti, cego, me viste ja banhados;
Quantos mortaes suspiros derramados
Do coração por tanto a ti sujeito,
Quantos males, em fim, tu me tens feito,
Todos forão em mi bem empregados.
A tudo satisfaz (confesso-te isto)
Huma só vista branda e amorosa
De quem me captivou minha ventura.
Oh sempre para mi hora ditosa!
Que posso temer ja, pois tenho visto,
Com tanto gôsto meu, tanta brandura?{143}
CCLXXXIV.
Posto me t~ee fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me t~ee rendido!
Não tenho que perder, ja de perdido,
Nem tenho que mudar, ja de mudado.
Todo bem para mi he acabado:
D'aqui dou o viver ja por vivido;
Que aonde o mal he tão conhecido,
Tambem o viver mais será'scusado.
Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convem:
E curarei hum mal com outro mal.
E pois do bem tão pouco bem espero,
Ja que o mal este só remedio tem,
Não me culpem em qu'rer remedio tal.
CCLXXXV.
Pues lágrimas tratais, mis ojos tristes,
Y en lágrimas pasais la noche y dia,
Mirad si es llanto este que os envia
Aquella por quien vos tantas vertistes:
Sentid, mis ojos, bien esta que vistes;
Y si ella lo es, oh gran ventura mia!
Por muy bien empleadas las habria
Mil cuentos que por esta sola distes.
Mas una cosa mucho deseada,
Aunque se vea cierta, no es creida,
Cuanto mas esta, que me es enviada.
Pero digo, que aunque sea fingida,
Que basta que por lágrima sea dada,
Porque sea por lágrima tenida.{144}
CCLXXXVI.
Que póde ja fazer minha ventura,
Que seja para meu contentamento?
Ou como fazer devo fundamento
De cousa que o não t~ee, nem he segura?
Que pena póde ser tão certa e dura,
Que possa ser maior que meu tormento?
Ou como receará meu pensamento
Os males, se com elles mais se apura?
Como quem se costuma de pequeno
Com peçonha criar por mão sciente,
Da qual o uso ja o t~ee seguro:
Assim de acostumado co'o veneno,
O uso de soffrer meu mal presente
Me faz não sentir ja nada o futuro.{145}