O crime do padre Amaro, scenas da vida devota

O crime do padre Amaro, scenas da vida devota
Author: Eça de Queirós
Pages: 883,120 Pages
Audio Length: 12 hr 15 min
Languages: pt

Summary

Play Sample

Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Abril 2010)



O CRIME

DO

PADRE AMARO




Obras do mesmo auctor:

Os Maias. 2 grossos volumes.2$000
O Crime do Padre Amaro. Terceira edição inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva. 1 grosso volume.1$200
O Primo Bazilio. Segunda edição. 1 grosso volume.1$000
A Reliquia. 1 grosso volume.1$000
O Mandarim. Segunda edição. 1 volume.500


No prelo:

Correspondencia de Fradique Mendes. 1 volume.




EÇA DE QUEIROZ


O CRIME

DO

PADRE AMARO


SCENAS DA VIDA DEVOTA



TERCEIRA EDIÇÃO

Inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma
e na acção da edição primitiva




PORTO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON
Casa editora
LUGAN & GEMELIOUX, Successores
1889

Todos os direitos reservados







Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 70




NOTA

(DA 2. ª EDIÇÃO)


O Crime do Padre Amaro recebeu no Brazil e em Portugal alguma attenção da Critica, quando foi publicado ulteriormente um romance intitulado—O Primo Bazilio. E no Brazil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se adduzir nenhuma prova effectiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitação do romance do snr. E. Zola—La Faute de l'Abbé Mouret; ou que este livro do auctor do Assomoir e de outros magistraes estudos sociaes suggerira a idéa, os personagens, a intenção do Crime do Padre Amaro.

Eu tenho algumas razões para crêr que isto não é correcto. O Crime do Padre Amaro foi escripto em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874. O livro do snr. Zola, La Faute de l'Abbé Mouret (que é o quinto volume da série Rougon Macquart), foi escripto e publicado em 1875.

Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas como subalterna e insufficiente. Eu podia, emfim, ter penetrado no cerebro, no pensamento do snr. Zola, e ter avistado, entre as fórmas ainda indecisas das suas creações futuras, a figura do abbade Mouret,—exactamente como o veneravel Anchises no valle dos Elyseos podia vêr, entre as sombras das raças vindouras fluctuando na nevoa luminosa do Lethes, aquelle que um dia devia ser Marcellus. Taes coisas são possiveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais extraordinarias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céos—e outros prodigios provados.

O que, segundo penso, mostra melhor que a accusação carece de exactidão, é a simples comparação dos dois romances. La Faute de l'Abbé Mouret é, no seu episodio central, o quadro allegorico da iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor. O abbade Mouret (Sergio), tendo sido atacado d'uma febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltação mystica no culto da Virgem, na solidão d'um valle abrazado da Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do seculo XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação allegorica do Paraiso. Ahi, tendo perdido na febre a consciencia de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdocio e da existencia da aldeia, e a consciencia do universo a ponto de ter medo do sol e das arvores do Paradou como de monstros estranhos—erra, durante mezes, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que é o genio, a Eva d'esse logar de legenda; Albina e Sergio, semi-nús como no Paraiso, procuram sem cessar, por um instincto que os impelle, uma arvore mysteriosa, da rama da qual cae a influencia aphrodisiaca da materia procreadora; sob este symbolo da Arvore da Sciencia se possuem, depois de dias angustiosos em que tentam descobrir, na sua innocencia paradisiaca, o meio physico de realisar o amor; depois, n'uma mutua vergonha subita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e d'ahi os expulsa, os arranca o padre Archangins, que é a personificação theocratica do antigo Archanjo. Na ultima parte do livro o abbade Mouret recupera a consciencia de si mesmo, subtrae-se á influencia dissolvente da adoração da Virgem, obtem por um esforço da oração e um privilegio da graça a extincção da sua virilidade, e torna-se um asceta sem nada d'humano, uma sombra cahida aos pés da cruz; e, é sem que lhe mude a côr ao rosto que asperge e responsa o esquife de Albina, que se asphyxiou no Paradou sob um montão de flôres de perfumes fortes.

Os criticos intelligentes que accusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l'Abbé Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do snr. Zola que foi talvez a origem de toda a sua gloria. A semelhança casual dos dois titulos induziu-os em erro.

Com conhecimento dos dois livros, só uma obtusidade cornea ou má fé cynica poderia assemelhar esta bella allegoria idyllica, a que está misturado o pathetico drama d'uma alma mystica, ao Crime do Padre Amaro que, como podem vêr n'este novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clerigos e de beatas tramada e murmurada á sombra d'uma velha Sé de provincia portugueza.

Aproveito este momento para agradecer á Critica do Brazil e de Portugal a attenção que ella tem dado aos meus trabalhos.


Bristol, 1 de janeiro de 1880.


Eça do Queiroz.




O CRIME

DO

PADRE AMARO




I



Foi no domingo de Paschoa que se soube em Leiria que o parocho da Sé, José Migueis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O parocho era um homem sanguineo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se historias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica—que o detestava—costumava dizer, sempre que o via sahir depois da sésta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:

—Lá vai a giboia esmoer. Um dia estoura!

Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe—á hora em que defronte, na casa do dr. Godinho que fazia annos, se polkava com alarido. Ninguem o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos d'um cavador, a voz rouca, cabellos nos ouvidos, palavras muito rudes.

Nunca fôra querido das devotas: arrotava no confessionario; e, tendo vivido sempre em freguezias da aldeia ou da serra, não comprehendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao principio, quasi todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de labia!

E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam fallar de escrupulos, de visões, José Migueis escandalisava-as, rosnando:

—Ora historias, santinha! Peça juizo a Deus! Mais miôlo na bola!

As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:

—Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, creatura!

Era miguelista—e os partidos liberaes, as suas opiniões, os seus jornaes enchiam-no d'uma cólera irracionavel:

—Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guardasol vermelho.

Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e vivia isolado—com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu unico amigo era o chantre Valladares que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois annos, o seu rheumatismo n'uma quinta do alto Minho. O parocho tinha um grande respeito pelo chantre, homem sêcco, de grande nariz, muito curto de vista, admirador d'Ovidio—que fallava fazendo sempre boquinhas e com allusões mythologicas.

O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hercules.

Hercules pela força, explicava sorrindo, Frei pela gula.

No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava offerecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa d'ouro, disse aos outros conegos, baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra:

—É a ultima pitada que lhe dou!

Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o conego Campos contou-a á noite ao chá em casa do deputado Novaes; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e affirmou-se com respeito—que sua excellencia tinha muita pilheria!

Dias depois do enterro appareceu, errando pela Praça, o cão do parocho, o Joli. A criada entrára com sezões no hospital; a casa fôra fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era um gôso pequeno, extremamente gordo,—que tinha vagas semelhanças com o parocho. Com o habito das batinas, avido d'um dono, apenas via um padre punha-se a seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guardasoes; o cão, repellido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma manhã appareceu morto ao pé da Misericordia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguem tornou a vêr o cão na Praça, o parocho José Migueis foi definitivamente esquecido.

Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro parocho. Dizia-se que era um homem muito novo, sahido apenas do seminario. O seu nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a influencias politicas, e o jornal de Leiria, A Voz do Districto, que estava na opposição, fallou com amargura, citando o Golgotha, no favoritismo da côrte e na reacção clerical. Alguns padres tinham-se escandalisado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.

—Não, não, lá que ha favor, ha; e que o homem tem padrinhos, tem, disse o chantre. A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da justiça). Até me diz na carta que o parocho é um bello rapagão. De sorte que—acrescentou sorrindo com satisfação—depois de Frei Hercules vamos talvez ter Frei Apollo.

Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o parocho novo: era o conego Dias que fôra, nos primeiros annos do seminario, seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas carnaes...

—Parece que o estou a vêr com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto bom rapaz. E espertote...

O conego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordára, o ventre saliente enchia-lhe a batina; e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas de frades lascivos e glotões.

O tio Patricio, o antigo, negociante da Praça, muito liberal, e que quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia ás vezes ao vêl-o atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao guardachuva:

—Que maroto! Parece mesmo D. João VI!

O conego vivia só com uma irmã velha, a snr.a D. Josepha Dias, e uma criada, que todos conheciam tambem em Leiria, sempre na rua, entrouxada n'um chale tingido de negro e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo. O conego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com perú, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o facto saliente da sua vida—o facto commentado e murmurado—era a sua antiga amizade com a snr.a Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joanneira, por ser natural de S. João da Foz. A S. Joanneira morava na rua da Misericordia e recebia hospedes. Tinha uma filha, a Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita, forte, muito desejada.

O conego Dias mostrára um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé exaltou os seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de costumes, a sua obediencia: gabava-lhe mesmo a voz: «um timbre que é um regalo!»

—Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa está a calhar!

Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma conesia decerto, talvez a gloria d'um bispado!

E um dia, emfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, creatura servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.

Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguezia de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e encorporar; camadas de cascalho cobriam o chão; e os grossos cylindros de pedra, que acalcam e recamam os macadams, enterravam-se na terra negra e humida das chuvas.

Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde o rio vem são collinas baixas, de fórmas arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos, estão os casaes que dão áquelles logares melancolicos uma feição mais viva e humana—com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pallidos, estende-se até os primeiros areaes o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de aguas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade; apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuiticas da Sé, um canto do muro do cemiterio coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos cyprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações rebeldes, onde destacam as ruinas do Castello, todas envolvidas á tarde nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar historico.

Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco á beira do rio. É um logar recolhido, coberto de arvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar, fallando baixo, o conego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre «uma idéa que ella lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre! » Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse uma casa de aluguel, barata, bem situada, e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de quartos n'uma casa de hospedes respeitavel. «Bem vê o meu caro Padre-Mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O que é necessario é que a casa seja respeitavel, socegada, central; que a patrôa tenha bom genio e que não peça mundos e fundos; deixo tudo isto á sua prudencia e capacidade, e creia que todos estes favores não cahirão em terreno ingrato. Sobretudo que a patrôa seja pessoa accommodada e de boa lingua. »

Ora a minha idéa, amigo Mendes, é esta: mettêl-o em casa da S. Joanneira! resumiu o conego com um grande contentamento. É rica idéa, hein?

—Soberba idéa! disse o coadjutor com a sua voz servil.

—Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que póde servir de escriptorio. Tem boa mobilia, boas roupas...

—Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.

O conego continuou:

—É um bello negocio para a S. Joanneira: dando os quartos, roupas, comida, criada, póde muito bem pedir os seus seis tostões por dia. E depois sempre tem o parocho de casa.

—Por causa da Ameliasinha é que eu não sei, considerou timidamente o coadjutor. Sim, póde ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor parocho é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são linguas do mundo.

O conego tinha parado:

—Ora historias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas telhas com a afilhada da mãi? E o conego Pedroso não vive com a cunhada, e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezenove annos? Ora essa!

—Eu dizia... attenuou o coadjutor.

—Não, não vejo mal nenhum. A S. Joanneira aluga os seus quartos, é como se fosse uma hospedaria. Então o secretario geral não esteve lá uns poucos de mezes?

—Mas um ecclesiastico... insinuou o coadjutor.

—Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias! exclamou o conego. E parando, com uma attitude confidencial:—E depois a mim é que me convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!

Houve um pequeno silencio. O coadjutor disse, baixando a voz:

—Sim, vossa senhoria faz muito bem á S. Joanneira...

—Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o conego. E com uma entonação terna, risonhamente paternal:—que ella é merecedora, é merecedora. Boa até alli, meu amigo! —Parou, esgazeando os olhos:—Olhe que dia em que eu não lhe appareça pela manhã ás nove em ponto, está n'um phrenesi! «Oh creatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se sem razão. » Mas então, é aquillo! Pois quando eu tive a colica o anno passado! Emmagreceu, snr. Mendes! E depois não ha lembrança que não tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal é para o padre santo, vossê sabe? é como ella me chama.

Fallava com os olhos luzidios, uma satisfação babosa:

—Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher!

—E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.

—Lá isso! exclamou o conego parando outra vez. Lá isso! Bem conservada até alli! Pois olhe que já não é criança! Mas nem um cabello branco, nem um, nem um só! E então que côr de pelle! —E mais baixo, com um sorriso guloso:—E isto aqui! ó Mendes, e isto aqui! —Indicava o lado do pescoço debaixo do queixo, passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda:—É uma perfeição! E depois mulher de aceio, muitissimo aceio! E que lembrançasinhas! Não ha dia que me não mande o seu presente! é o covilhete de geleia, é o pratinho d'arroz dôce, é a bella murcella d'Arouca! Hontem me mandou ella uma torta de maçã. Ora havia de vossê vêr aquillo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josepha disse: «Está tão boa que parece que foi cozida em agua benta! »—E pondo a mão espalmada sobre o peito:—São coisas que tocam a gente cá por dentro, Mendes! Não, não é lá por dizer, mas não ha outra.

O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.

—Eu bem sei, disse o conego parando de novo e tirando lentamente as palavras, eu bem sei que por ahi rosnam, rosnam... Pois é uma grandissima calumnia! O que é, é que eu tenho muito apêgo áquella gente. Já o tinha em tempo do marido. Vossê bem o sabe, Mendes.

O coadjutor teve um gesto affirmativo.

—A S. Joanneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o conego batendo no chão fortemente com a ponteira do guardasol.

—As linguas do mundo são venenosas, senhor conego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E depois d'um silencio acrescentou baixo:—Mas aquillo a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!

—Pois ahi está, meu amigo! Imagine vossê que desde que o secretario geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panella, Mendes!

—Que ella tem uma fazendita, considerou o coadjutor.

—Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as decimas, os jornaes! Por isso digo eu, o parocho é uma mina. Com os seis tostões que elle der, com o que eu ajudar, com alguma coisa que ella tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um allivio, Mendes.

—É um allivio, senhor conego! repetiu o coadjutor.

Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida; o alto céo tinha uma pallida côr azul; o ar estava immovel. N'aquelle tempo o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em sêcco; e a agua baixa arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.

Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram então pelo caminho lodoso que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto d'um silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pellado da canga, bebiam de leve, sem ruido; a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em redor com a passiva tranquillidade dos sêres fartos—e fios de agua, babados, luzidios á luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho. Com a inclinação do sol a agua perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas ia subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens côr de sanguinea e côr de laranja que annunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma decoração muito rica.

—Bonita tarde! disse o coadjutor.

O conego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:

—Vamo-nos chegando ás Ave-Marias, hein?

Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o conego parou, e voltando-se para o coadjutor:

—Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joanneira! É uma pechincha para todos.

—Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande pechincha!

E entraram na igreja, persignando-se.



II



Uma semana depois soube-se que o novo parocho devia chegar pela diligencia de Chão de Maçãs, que traz o correio á tarde; e desde as seis horas o conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do Chafariz, á espera de Amaro.

Era então nos fins de agosto. Na longa alameda macadamisada que vai junto do rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres, velhas fiavam á porta; crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando os seus enormes ventres nús; e gallinhas em redor iam picando vorazmente as immundicies esquecidas. Em redor do chafariz cheio de ruido, onde os cantaros arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cantaro bojudo de barro equilibrado á cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os quadris; e dois officiaes ociosos, com a farda desapertada sobre o estomago, conversavam, esperando, a vêr quem viria. A diligencia tardava. Quando o crepusculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se alumiando uma a uma, com uma luz soturna, as janellas do hospital.

Já tinha anoitecido quando a diligencia, com as lanternas accesas, entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus magros cavallos brancos, e veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz; o caixeiro do tio Patricio partiu logo a correr para a Praça com o maço dos Diarios Populares; o tio Baptista, o patrão, com o cachimbo negro ao canto da boca, desatrellava, praguejando tranquillamente; e um homem que vinha na almofada, ao pé do cocheiro, de chapéo alto e comprido capote ecclesiastico, desceu cautelosamente, agarrando-se ás guardas de ferro dos assentos, bateu com os pés no chão para os desentorpecer, e olhou em redor.

—Oh, Amaro! gritou o conego que se tinha aproximado, oh, ladrão!

—Oh, Padre-Mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, emquanto o coadjutor, todo curvado, tinha o barrete na mão.

D'ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça, entre a corpulencia vagarosa do conego Dias e a figura esguia do coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote de padre. Soube-se que era o parocho novo; e disse-se logo na botica que era uma boa figura de homem. O João Bicha levava adiante um bahú e um sacco de chita; e como áquella hora já estava bebedo, ia resmungando o Bemdito.

Eram quasi nove horas, a noite cerrára. Em redor da Praça as casas estavam já adormecidas: das lojas debaixo da arcada sahia a luz triste dos candieiros de petroleo, entreviam-se dentro figuras somnolentas, caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar á Praça, tortuosas, tenebrosas, com um lampeão mortiço, pareciam deshabitadas. E no silencio o sino da Sé dava vagarosamente o toque das almas.

O conego Dias ia explicando pachorrentamente ao parocho «o que lhe arranjára». Não lhe tinha procurado casa: seria necessario comprar mobilia, buscar criada, despezas innumeraveis! Parecera-lhe melhor tomar-lhe quartos n'uma casa de hospedes respeitavel, de muito conchego—e n'essas condições (e alli estava o amigo coadjutor que o podia dizer), não havia como a da S. Joanneira. Era bem arejada, muito aceio, a cozinha não deitava cheiro; tinha lá estado o secretario geral e o inspector dos estudos; e a S. Joanneira (o Mendes amigo conhecia-a bem) era uma mulher temente a Deus, de boas contas, muito economica e cheia de condescendencias...

—Vossê está alli como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de meio, café...

—Vamos a saber, Padre-Mestre: preço? disse o parocho.

—Seis tostões. Que diabo, é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...

—Uma rica saleta, commentou o coadjutor respeitosamente.

—E é longe da Sé? perguntou Amaro.

—Dois passos. Póde-se ir dizer missa de chinelos. Na casa ha uma rapariga, continuou com a sua voz pausada o conego Dias. É a filha da S. Joanneira. Rapariga de vinte e dois annos. Bonita. Sua pontinha de genio, mas bom fundo... Aqui tem vôsse a sua rua.

Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha Misericordia, com um lampeão lugubre ao fundo.

—E aqui tem vossê o seu palacio! disse o conego, batendo na aldraba de uma porta esguia.

No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam saliencia, com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas de madeira; as janellas de cima, pequeninas, eram de peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.

A S. Joanneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta, alumiava com um candieiro de petroleo; e a figura da S. Joanneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda, alta, muito branca, d'aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pelle engelhada; os cabellos arripiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos, um collo copioso e roupas aceadas.

—Aqui tem a senhora o seu hospede, disse o conego subindo.

—Muita honra em receber o senhor parocho! muita honra! Ha de vir muito cansado! por força! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrausinho.

Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello, com um vasto canapé de palhinha encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta verde.

—É a sua sala, senhor parocho, disse a S. Joanneira. Para receber, para espairecer... Aqui—acrescentou abrindo uma porta—é o seu quarto de dormir. Tem a sua commoda, o seu guarda-roupa... —Abriu os gavetões, gabou a cama batendo a elasticidade dos colxões—Uma campainha para chamar sempre que queira... As chavinhas da commoda estão aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto... Tem um cobertor só, mas querendo...

—Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, disse o parocho com a sua voz baixa e suave.

—É pedir! O que ha, da melhor vontade...

—Oh creatura de Deus! interrompeu o conego jovialmente, o que elle quer agora é cear!

—Tambem tem a ceiasinha prompta. Desde as seis que está o caldo a apurar...

E sahiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:

—Vá, Ruça, mexe-te, mexe-te!...

O conego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:

—É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.

—Eu estou bem em toda a parte, Padre-Mestre, disse o parocho, calçando os seus chinelos de ourelo. Olha o seminario!... E em Feirão! Cahia-me a chuva na cama.

Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cornetas.

—Que é aquillo? perguntou Amaro, indo á janella.

—Ás nove e meia, o toque de recolher.

Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candieiro esmorecia. A noite estava muito negra. E havia sobre a cidade um silencio concavo, de abobada.

Depois das cornetas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do quartel; por baixo da janella um soldado, que se demorára n'alguma viella do castello, passou correndo; e das paredes da Misericordia sahia constantemente o agudo piar das corujas.

—É triste isto, disse Amaro.

Mas a S. Joanneira gritou de cima:

—Póde subir, senhor conego! Está o caldo na mesa!

—Ora vá, vá, que vossê deve estar a cahir de fome, Amaro! —disse o conego, erguendo-se muito pesado.

E detendo um momento o parocho pela manga do casaco:

—Vai vossê vêr o que é um caldo de gallinha feito cá pela senhora! Da gente se babar!...


No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo á luz forte d'um candieiro d'abat-jour verde. Da terrina subia o vapor cheiroso do caldo, e na larga travessa a gallinha gorda, afogada n'um arroz humido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma apparencia succulenta de prato morgado. No armario envidraçado, um pouco na sombra, viam-se côres claras de porcelana; a um canto, ao pé da janella, estava o piano, coberto com uma colcha de setim desbotado. Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha d'um taboleiro de roupa lavada, o parocho esfregou as mãos, regalado.

—Para aqui, senhor parocho, para aqui, disse a S. Joanneira. D'ahi póde-lhe vir frio. —Foi fechar as portadas das janellas; chegou-lhe um caixão de areia para as pontas dos cigarros. —E o senhor conego toma um copinho de geleia, sim?

—Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o conego, sentando-se e desdobrando o guardanapo.

A S. Joanneira, no emtanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o parocho que, com a cabeça sobre o prato, comia em silencio o seu caldo, soprando a colhér. Parecia bem feito: tinha um cabello muito preto, levemente annelado. O rosto era oval, de pelle trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas compridas.

O conego, que não o via desde o seminario, achava-o mais forte, mais viril.

—Vossê era enfezadito...

—Foi o ar da serra, dizia o parocho, fez-me bem. —Contou então a sua triste existencia em Feirão, na alta Beira, durante a aspereza do inverno, só, com pastores. O conego deitava-lhe o vinho de alto, fazendo-o espumar.

—Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! D'esta gota não pilhava vossê no seminario.

Fallaram do seminario.

—Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o conego.

—E do Carôcho, que roubava as batatas?

Riram; e bebendo, na alegria das reminiscencias, recordavam as historias de então, o catarrho do reitor, e o mestre de canto-chão que deixára um dia cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage.

—Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.

A S. Joanneira então poz na mesa um prato covo com maçãs assadas.

—Viva! Não, lá n'isso tambem eu entro! exclamou logo o conego. A bella maçã assada! nunca me escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica dona de casa, cá a nossa S. Joanneira! Grande dona de casa!

Ella ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto; poz no prato do conego, com requintes devotos, uma maçã desfeita polvilhada de assucar; e batendo-lhe nas costas com a mão papuda e molle:

—Isto é um santo, senhor parocho, isto é um santo! Ai, devo-lhe muitos favores!

—Deixe fallar, deixe fallar... , dizia o conego. —Espalhava-se-lhe no rosto um contentamento baboso. —Boa gota! acrescentou, saboreando o seu calix de porto. Boa gota!

—Olhe que ainda é dos annos da Amelia, senhor conego.

—E onde está ella, a pequena?

—Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquillo naturalmente foram para casa das Gansosos passar a noite.

—Cá esta senhora é proprietaria, explicou o conego, fallando do Morenal. É um condado! —Ria com bonhomia, e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulencia da S. Joanneira.

—Ah, senhor parocho, deixe fallar, é uma nesga de terra... , disse ella.

Mas vendo a criada encostada á parede, sacudida com afflicções de tosse:

—Ó mulher, vai tossir lá p'ra dentro! credo!

A moça sahiu, pondo o avental sobre a boca.

—Parece doente, coitada, observou o parocho.

Muito achacada, muito!... A pobre de Christo era sua afilhada, orphã, e estava quasi tisica. Tinha-a tomado por piedade...

—E tambem porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a desavergonhada... Metteu-se ahi com um soldado!...

O padre Amaro baixou devagar os olhos—e trincando migalhas perguntou se havia muitas doenças n'aquelle verão.

—Cholerinas, das fructas verdes, rosnou o conego. Mettem-se pelas melancias, depois tarraçadas de agua... E suas febritas...

Fallaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.

—Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, tenho saude, tenho!

—Ai, Nosso Senhor lh'a conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a S. Joanneira. —Contou immediatamente a grande desgraça que tinha em casa, uma irmã meia idiota entrevada havia dez annos! Ia fazer sessenta annos... No inverno viera-lhe um catarrho, e desde então, coitadinha, definhava, definhava...

—Ha bocado, ao fim da tarde, teve ella um ataque de tosse! Pensei que se ia embora. Agora descansou mais...

Continuou a fallar «d'aquella tristeza», depois da sua Ameliasinha, das Gansosos, do antigo chantre, da carestia de tudo—sentada, com o gato no collo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão. O conego, pesado, cerrava as palpebras; tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo; a luz do candieiro esmorecia.

—Pois senhores, disse por fim o conego mexendo-se, isto são horas!

O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as graças.

—O senhor parocho quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S. Joanneira.

—Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!

E desceu devagar, palitando os dentes.

A S. Joanneira alumiava no patamar, com o candieiro. Mas nos primeiros degraus o parocho parou, e voltando-se, affectuosamente:

—É verdade, minha senhora, ámanhã é sexta-feira, é jejum...

—Não, não, acudiu o conego que se embrulhava na capa de lustrina, bocejando, vossê ámanhã janta commigo. Eu venho por cá, vamos ao chantre, á Sé, e por ahi... E olhe que tenho lulas. É um milagre, que isto aqui nunca ha peixe.

A S. Joanneira tranquillisou logo o parocho:

—Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor parocho. Tenho o maior escrupulo!

—Eu dizia, explicou o parocho, porque infelizmente hoje em dia ninguem cumpre...

—Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ella. Mas eu! credo!... A salvação da minha alma antes de tudo!

A campainha em baixo, então, retiniu fortemente.

—Ha de ser a pequena, disse a S. Joanneira. Abre, Ruça!

A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.

-És tu, Amelia?

Uma voz disse adeusinho!adeusinho! E appareceu, subindo quasi a correr, com os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bella rapariga, forte, alta, bem feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim.

—Sobe, filha. Aqui está o senhor parocho. Chegou agora á noitinha, sobe!

Amelia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de cima, onde o parocho ficára, encostado ao corrimão. Respirava fortemente de ter corrido; vinha córada; os seus olhos vivos e negros luziam; e sahia d'ella uma sensação de frescura e de prados atravessados.

O parocho desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando boas noites! com a cabeça baixa. O conego, que descia atraz, pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amelia:

—Então isto são horas, sua bréjeira!

Ella teve um risinho, encolheu-se.

—Ora vá-se encommendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com a sua mão grossa e cabelluda.

Ella subiu a correr, emquanto o conego, depois d'ir buscar o guardasol á saleta, sahia, dizendo á criada, que erguia o candieiro sobre a escada:

—Está bom, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então ás oito, Amaro! Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus! Reza á Senhora da Piedade que te seque essa catarrheira.

O parocho fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga d'um Christo crucificado. Amaro abriu o seu Breviario, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o tecto, através das orações rituaes que machinalmente ia lendo, começou a sentir o tic-tic das botinas de Amelia e o ruido das saias engommadas que ella sacudia ao despir-se.



III



Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d'Alegros. Seu pai era criado do marquez; a mãi era criada de quarto, quasi uma amiga da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das selvas, com barbaras imagens coloridas, que tinha escripto na primeira pagina branca: Á minha muito estimada criada Joanna Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido,—Marqueza d'Alegros. Possuia tambem um daguerreotypo de sua mãi: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma côr ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra sempre tão sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge. Amaro completára então seis annos. Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adopção tacita; e começou, com grandes escrupulos, a vigiar a sua educação.

A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a maior parte do anno retirada na sua quinta de Carcavellos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capella em casa, um respeito devoto pelos padres de S. Luiz, sempre preoccupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do Céo e nas preoccupações da Moda, eram beatas e faziam o chic fallando com igual fervor da humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas. Um jornalista de então dissera d'ellas:—Pensam todos os dias na toilette com que hão de entrar no paraiso.

No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta de alamedas aristocraticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguezia, bordavam frontaes para os altares da igreja. De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e dôces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão.

A senhora marqueza resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida ecclesiastica. A sua figura amarellada e magrita pedia aquelle destino recolhido: era já affeiçoado ás coisas de capella, e o seu encanto era estar aninhado ao pé de mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo fallar de santas. A senhora marqueza não o quiz mandar ao collegio porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes. O capellão da casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a snr.a D. Luiza, que tinha um nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francez e de geographia.

Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se á tarde acompanhava a senhora marqueza ás alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, môno, muito encolhido, torcendo com as mãos humidas o forro das algibeiras—vagamente assustado das espessuras d'arvoredos e do vigor das relvas altas.

Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé d'uma ama velha. As criadas de resto feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas, e elle rolava por entre as saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás vezes, quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas: elle abandonava-se, meio nú, com os seus modos languidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tornou-se enredador, muito mentiroso.

Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados limpava a capella. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, collocava os santos em plena luz em cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santissimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Martyres.

No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miudo e amarellado; nunca dava uma boa risada, trazia sempre as mãos dos bolsos. Estava constantemente mettido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bolia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã arrancal-o a uma somnolencia doentia em que ficava amollecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.


N'um domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marqueza de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joanna, entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado de realisar esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze annos.

As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para Lisboa, para casa da snr.a D. Barbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro era um homem obeso, casado com a filha d'um pobre empregado publico, que o aceitára para sahir da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o marido, as suas mãos cabelludas, a loja, o bairro e o seu apellido de snr.a Gonçalves. O marido esse adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo; carregava-a de joias e chamava-lhe a sua duqueza.

Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera tepidamente envolvido em Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle; passava os seus dias lendo romances, as analyses dos theatros nos jornaes, vestida de sêda, coberta de pó d'arroz, o cabello em cachos, esperando a hora em que passava debaixo das janellas, puxando os punhos, o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro apropriou-se então de Amaro como d'uma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer logo ás cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando á pressa o pão na chavena de café, ao canto da mesa da cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro. Pesava-lhes até o magro pedaço de vacca que elle comia ao jantar. Amaro emmagrecia e todas as noites chorava.

Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario. O tio todos os dias lh'o lembrava:

—Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro! Em tendo quinze annos é para o seminario. Não tenho obrigação de carregar comtigo! Besta na argola, não está nos meus principios!

E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento.

Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepelliz; a sua natureza passiva, facilmente dominavel, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava ser padre. Desde que sahira das rezas perpetuas de Carcavellos conservára o seu medo do inferno, mas perdera o fervor dos santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas e tomavam rapé em caixas d'ouro; e convinha-lhe aquella profissão em que se falla baixo com as mulheres,—vivendo entre ellas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,—e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um annel de rubi no dedo minimo; monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos d'ouro, bebendo aos goles o seu copo de madeira. As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre na Bahia, viajára, estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam a agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em extase e cheias d'um riso beato, cantava, para as entreter, com a sua bella voz:


Mulatinha da Bahia,
Nascida no Capujá...


Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel-o ir a um mestre para se affirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só á escóla, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exercicio de infanteria, espreitou ás portas dos cafés, leu os cartazes dos theatros. Sobretudo começára a reparar muito nas mulheres—e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da escóla, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janellinha n'um vão sobre os telhados. Encostava-se alli olhando, e via parte da cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gaz: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas pelos perystillos dos theatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente appareciam-lhe no fundo negro da noite fórmas femininas, por fragmentos, uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao hombro... Mas em baixo, na cozinha, a criada começava a lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe então desejos de descer, ir roçar-se por ella, ou estar a um canto a vêl-a escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas viellas, de saias engommadas e ruidosas, passeando em cabello, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu sêr, subia-lhe uma preguiça, como que a vontade de abraçar alguem, de não se sentir só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:

—Então tu não estudas, mariola?

E d'ahi a pouco, sobre o Tito-Livio, cabeceando de somno, sentindo-se desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava o diccionario.

Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, porque não poderia casar. Já as convivencias da escóla tinham introduzido na sua natureza effeminada curiosidades, corrupções. Ás escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava mais amarello.


Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco humidos, as lampadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras, o silencio regulamentado, o toque das sinetas—deram-lhe uma tristeza lugubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou. Começaram a tratal-o por tu, a admittil-o, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, ás conversas em que se contavam anecdotas dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura: porque quasi todos fallavam com saudade das existencias livres que tinham deixado: os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, emquanto um vapor se exhala dos prados; os que vinham das pequenas villas lamentavam as ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram as visinhas, os alegres dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas arvores definhadas, os altos muros somnolentos, o monotono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes—o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro.

Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada; á tardinha uma diligencia costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos; quantos olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com elles para as alegres villas e para as cidades, pela frescura das madrugadas ou sob a claridade das estrellas!

E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente de voz grossa começava a lêr monotonamente as cartas d'algum missionario da China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades dos jantares de familia! As boas postas de peixe! o tempo da matança! os rojões quentes que chiam no prato! os sarrabulhos cheirosos!

Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto enfastiado da tia coberto de pó d'arroz; mas insensivelmente poz-se tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade do gaz e das voltas da escóla com os livros n'uma correia, quando parava encostado á vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas!

Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica, foi entrando como uma ovelha indolente na regra do seminario. Decorava com regularidade os seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos serviços ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes—chegou a ter boas notas.

Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com beatitude e maceravam os joelhos, ruminando, com a cabeça baixa, textos da Imitação ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos em alvo, empallideciam d'extase; mesmo no recréio, ou nos passeios, iam lendo algum volumesinho de Louvores a Maria; e cumpriam com delicia as regras mais miudas—até subir só um degrau de cada vez, como recommenda S. Boaventura. A esses o seminario dava um ante-gosto do céo: a elle só lhe offerecia as humilhações d'uma prisão, com os tedios d'uma escóla.

Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que queriam ser caudatarios d'um bispo, e nas altas salas dos paços episcopaes erguer os reposteiros de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados, servir uma igreja aristocratica, e, diante das devotas ricas que se accumulam no frou-frou das sêdas sobre o tapete do altar-mór, cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o tlim-tlim d'um sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um chapéo desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas largas eiras cheias de medas, apear á porta das adegas. E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.

Amaro não desejava nada:

—Eu nem sei... , dizia elle melancolicamente.

No entretanto, escutando por sympathia aquelles para quem o seminario era o «tempo das galés», sahia muito perturbado d'aquellas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Ás vezes fallavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janellas, as peripecias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa, o desejo da Mulher.

Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas, pousada sobre a esphera, com o olhar errante pela luz immortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ella como para um refugio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a lithographia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da imagem e suppôr fórmas, redondezas, uma carne branca... Julgava então vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama d'agua benta; mas não se atrevia a revelar estes delirios, no confessionario, ao domingo.

Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral fallar, com a sua voz roufenha, do Peccado, comparal-o á serpente e, com palavras unctuosas e gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a pompa mellíflua dos seus periodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente ominosa! E depois era o mestre de Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Chrysologo, S. Cypriano e S. Jeronymo, explicava os anathemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da mentira, Porta do inferno, Cabeça do crime, Escorpião...

—E como disse o nosso padre S. Jeronymo,—e assoava-se estrondosamente—Caminho de iniquidades, iniquitas via!

Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher! Que sêr era esse, pois, que através de toda a theologia ora era collocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes barbaras? Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extatica, dando-lhe por acclamação o profundo reino dos céos,—ora vai fugindo diante d'ella como do Universal Inimigo, com soluços de terror e gritos d'odio, e escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações! ellas renasciam, desmoralisavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfallecia no desejo de os quebrar.

E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da natureza: os estudos, os jejuns, as penitencias podiam domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um ninho serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam eram os sanguineos, tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia: luctavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos lymphaticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios molles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho baralho, lêr um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros—quantos encantos do peccado!

Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silencio da alta livraria, eram respeitados, usavam oculos, tomavam rapé. Elle mesmo tinha ás vezes ambições repentinas da sciencia; mas diante dos vastos in-folios vinha-lhe um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto: rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminario! A capella, os chorões do pateo, as comidas monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade d'uma rua ou na paz d'um quintal, fóra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha suores eticos: e mesmo no ultimo anno, depois do serviço pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.


Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminario, esta carta do snr. padre Liset:

«Meu querido filho e novo collega. —Agora que está ordenado, entendo em minha consciencia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios, pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus hombros debeis a nossa chorada marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco deviam importar a uma alma votada ao sacerdocio, são sempre as boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marqueza—para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna—está inteiramente exhausto. Aproveito esta occasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabelecimento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se ligado illegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hospedes na rua dos Calafates n. º 53. Se toco n'estas impurezas, tão improprias de que um tenro levita como o meu querido filho tenha d'ellas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitavel familia. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circumstancias, que o meu querido filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão, na Gralheira, vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de attender um pobre padre que só pede a Deus misericordia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade n'este nosso santo ministerio quando sabemos comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos os refrigerios que dá—o serviço de Deus! Adeus, meu querido filho e novo collega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupillo da nossa chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram as suas virtudes, supplica á Virgem, que ella tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupillo. » Liset.

«P. S. —O appellido do marido de sua irmã é Trigoso. » Liset.

Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão, na Gralheira, serra da Beira-Alta. Esteve alli desde outubro até ao fim das neves.

Feirão é uma parochia pobre de pastores e n'aquella época quasi deshabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio á lareira, ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera vagaram nos districtos de Santarem e de Leiria parochias populosas, com boas congruas. Amaro escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em Feirão; ella mandou-lhe, com recommendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, sympathico, com uma boa côr na pelle trigueira.

Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n. º 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de pó d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro.

-Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu! Ih, Jesus! que mudança!

Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos generos, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.

—Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E baratinho!... Ai! ter-te de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãosinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça...

Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luiz. Tinha ido para França. Lembrou-se então da filha mais nova da senhora marqueza d'Alegros, a snr.a D. Luiza, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro d'Estado, com influencia, regenerador fiel desde cincoenta e um e duas vezes ministro do reino.

E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da snr.a condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta um coupé esperava.

—A senhora condessa vai sahir, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado á hombreira do pateo, de cigarro na boca.

N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados sobre a testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido e agudo, e no queixo um signalzinho de cabellos claros.

—A senhora condessa já me não conhece... , disse Amaro com o chapéo na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.

—O Amaro!? disse ella como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem elle é! Ora não ha! Está um homem! Quem diria!

Amaro sorria-se.

—Eu podia lá esperar! continuou ella admirada. E está agora em Lisboa?

Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da parochia...

—De maneira que vim requerer, senhora condessa.

Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta sombrinha de sêda clara, e Amaro sentia vir d'ella um perfume de pó d'arroz e uma frescura de cambraias.

—Pois deixe estar, disse ella, fique descansado. Meu marido ha de fallar. Eu me encarrego d'isso. Olhe, venha por cá. —E com o dedo sobre o canto da boca:—Espere, ámanhã vou para Cintra. Domingo, não. O melhor é d'aqui a quinze dias. D'aqui a quinze dias pela manhã, sou certa. —E rindo com os seus largos dentes frescos:—Parece que o estou a vêr traduzir Chateaubriand com a mana Luiza! Como o tempo passa!

—Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.

—Sim, bem. Está n'uma quinta em Santarem.

Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, n'um aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes d'ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.

Amaro começou então a esperar. Era em julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janellas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monotona susurração das moscas; a tia a um canto do velho canapé de palhinha fazia crochet, com a luneta encavallada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.

Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se, no ar pesado e immovel: a todos os cantos se apregoava monotonamente agua fresca! Pelos bancos, debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam; em redor da praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.

Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janella aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido ha de fallar! E via-se já parocho n'uma bonita villa, n'uma casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranquillo e importante, recebendo bandejas de dôce das devotas ricas.

Vivia então n'um estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminario lhe causava a continencia, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que elle gostava de vêr ao domingo tocar á missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao céo as orações que manda o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.

No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.

—Não está, disse-lhe um criado da cavallariça.

Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho fixado com varões de metal. Da alta claraboia cahia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado n'uma banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado á parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço cahido, dormia. Fazia um grande calor; aquelle alto silencio aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento com o seu guardasol pendente do dedo minimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta, o seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando ouviu por detraz d'um reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho n'uma larga sala com estofos de damasco amarello; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da sala tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:

—Não sei se incommódo...

Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de ouro, voltou-se surprehendido, com o charuto ao canto da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde.

—Sou Amaro...

—Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher fallou-me. Tem a bondade...

E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi calvo, de calças brancas muito curtas:

—É a pessoa de quem lhe fallei. —Voltou-se para Amaro:—É o senhor ministro.

Amaro curvou-se, servilmente.

—O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi creado de pequeno em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu...

—Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro que se conservava afastado, com o guardasol na mão.

—Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora,—já não ha d'isso! —fel-o padre. Houve até um legado, creio eu... Emfim, aqui o temos parocho... Onde, senhor padre Amaro?

—Feirão, excellentissimo senhor.

—Feirão!?... disse o ministro estranhando o nome.

—Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado. Era um homem magro, entalado n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel cabello lustroso de pomada, apartado até ao cachaço n'uma risca perfeita.

—Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguezia pobre, sem distracções, com um clima horrivel...

—Eu metti já requerimento, excellentissimo senhor, arriscou Amaro timidamente.

—Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se. —E mascava o seu charuto.

—É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e activos devem estar nas parochias difficeis, nas cidades... É claro! Mas não: olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, ha um velho, um gottoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.

—É verdade, disse o ministro, mas essas collocações nas boas parochias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessario o estimulo...

—Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionaes, serviços á Igreja, não serviços aos governos.

O homem das soberbas suiças negras teve um gesto d'objecção.

—Não acha? perguntou-lhe o conde.

—Respeito muito a opinião de vossa excellencia, mas se me permitte... Sim, digo eu, os parochos na cidade são-nos d'um grande serviço nas crises eleitoraes. D'um grande serviço!

—Pois sim. Mas...

—Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego da palavra. Olhe vossa excellencia em Thomar. Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada mais.

O conde acudiu:

—Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes eleitoraes.

—Perdão... queria interromper o outro.

O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da auctoridade d'um vasto entendimento:

—A religião, disse elle, póde, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio...

—Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelliculas mascadas de charuto.

—Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar, aos imbroglios... Perdôe-me, meu caro amigo, mas não é d'um christão.

—Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem das suiças soberbas. Sou-o a valer! Mas tambem sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais solidas...

—Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero e desacredita a politica.

—Mas são ou não as maiorias um principio sagrado? gritava rubro o das suiças, accentuando o adjectivo.

—São um principio respeitavel.

—Upa! upa, excellentissimo senhor! upa!

O padre Amaro escutava, immovel.

—Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou:—Entre. É o senhor padre Amaro, Joanna!

Era uma sala forrada de papel branco assetinado, com moveis estofados de casimira clara. Nos vãos das janellas, entre as cortinas de pregas largas d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas quasi junto do chão por faxas de sêda, arbustos delgados, sem flôr, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas d'uma cadeira uma arara empoleirada, firme n'um só pé negro, coçava vagarosamente, com contracções aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre os joelhos abertos, occupava-se em balançar, como um pendulo, um pince-nez de tartaruga. A condessa tinha no regaço uma cadellinha, e com a sua mão sêcca e fina, cheia de veias, acamava-lhe o pêllo branco como algodão.

—Como está, snr. Amaro? —A cadella rosnou. —Quieta, Joia... Sabe que já fallei no seu negocio? Quieta, Joia... O ministro está alli.

—Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.

—Sente-se aqui, senhor padre Amaro.

Amaro pousou-se á beira d'um fauteil, com o seu guardasol na mão—e reparou então n'uma senhora alta que estava de pé, junto do piano, fallando com um rapaz louro.

—Que tem feito estes dias, snr. Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?

—Está em Coimbra, casou.

—Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anneis.

Houve um silencio. Amaro, d'olhos baixos, passava, com um gesto embaraçado e errante, os dedos pelos beiços.

—O senhor padre Liset está para fóra? perguntou.

—Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. Está o mesmo sempre; muito amavel, muito dôce. É a alma mais virtuosa!...

—Eu prefiro o padre Felix, disse o rapaz gordo estirando as pernas.

—Não diga isso, primo! Jesus, brada aos céos! Pois então o padre Liset, tão respeitavel!... E depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... Vê-se que é um coração delicado...

—Pois sim, mas o padre Felix...

—Ai, nem diga isso! Que o padre Felix é uma pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais... —E com um gesto delicado procurava a palavra:—mais fina, mais distincta... Emfim, vive com outra gente. —E sorrindo para Amaro:—Pois não acha?

Amaro não conhecia o padre Felix, não se recordava do padre Liset.

—Já é velho o senhor padre Liset, observou ao acaso.

—Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que enthusiasmo!... Ai, é outra coisa! —E voltando-se para a senhora que estava junto do piano:—Pois não achas, Thereza?

—Já vou, respondeu Thereza, toda absorvida.

Amaro afirmou-se então n'ella. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura, uma linha de hombros e de seio magnifica; os cabellos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a pallidez do rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Marie Antoinette; o seu vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom monotono das alvuras da sala; o collo, os braços estavam cobertos por uma gaze preta, que fazia apparecer através a brancura da carne; e sentia-se nas suas fórmas a firmeza dos marmores antigos, com o calor d'um sangue rico.

Fallava baixo, sorrindo, n'uma lingua aspera que Amaro não comprehendia, cerrando e abrindo o seu leque preto—e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta d'um bigode fino, com um quadrado de vidro entalado no olho.

—Havia muita devoção na sua parochia, snr. Amaro? perguntava no emtanto a condessa.

—Muita, muito boa gente.

—É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, considerou ella com um tom piedoso. —Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos captiveiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua quinta de Carcavellos, rezar na pequena capella antiga, conversar com as boas almas da aldeia! —e a sua voz tornára-se terna.

O rapaz rechonchudo ria-se:

—Ora, prima! dizia; ora, prima! —Não, elle, se o obrigassem a ouvir missa n'uma capellinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!... Não comprehendia, por exemplo, a religião sem musica... Era lá possivel uma festa religiosa sem uma boa voz de contralto!?

—Sempre é mais bonito, disse Amaro.

—Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó prima, lembra-se d'aquelle tenor... como se chamava elle? O Vidalti. Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglezinhos? O tantum ergo?

—Eu preferia-o no Baile de mascaras, disse a condessa.

—Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!

No emtanto o rapaz louro viera apertar a mão á senhora condessa, fallando-lhe baixo, muito risonho. Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe cahira uma luva, e apanhou-lh'a servilmente. Quando elle sahiu Thereza, depois de se ter aproximado vagarosamente da janella e olhado para a rua—foi sentar-se n'uma causeuse com um abandono que punha em relêvo a magnifica esculptura do seu corpo; e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:

—Vamo-nos, João?

A condessa disse-lhe então:

—Sabes que o senhor padre Amaro foi creado commigo em Bemfica?

Amaro fez-se vermelho: sentia que Thereza pousava sobre elle os seus bellos olhos d'um negro humido como o setim preto coberto de agua.

—Está na provincia agora? perguntou ella, bocejando um pouco.

—Sim, minha senhora, vim ha dias.

—Na aldeia? continuou ella, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.

Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o cabo do guardasol:

—Na serra, minha senhora.

—Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Ha sempre neve, diz que a igreja não tem telhado, são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao ministro a vêr se o mudavamos. Pede-lhe tu tambem...

—O quê? disse Thereza.

A condessa contou que Amaro requerera para uma parochia melhor. Fallou de sua mãi, da amizade que ella tinha a Amaro...

—Morria-se por elle. Ora um nome que ella lhe dava... Não se lembra?

—Não sei, minha senhora.

—Frei Maleitas!... Tem graça! Como o snr. Amaro era amarellito, sempre mettido na capella...

Mas Thereza, dirigindo-se á condessa:

—Sabes com que se parece este senhor?

A condessa affirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.

—Não se parece com aquelle pianista do anno passado? continuou Thereza. Não me lembra agora o nome...

—Bem sei, o Jalette, disse a condessa. Bastante. No cabello, não.

—Está visto, o outro não tinha corôa!

Amaro fez-se escarlate. Thereza ergueu-se arrastando a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.

—Sabe musica? perguntou, voltando-se para Amaro.

—A gente aprende no seminario, minha senhora.

Ella correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a phrase do Rigoleto, parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro acto, da senhora de Crécy—e cujo rhythmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.

Amaro estava enlevado. Aquella sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o collo de Thereza que elle via sob a negra transparencia da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquillos arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéa d'uma existencia superior, de romance, passada sobre alcatifas preciosas, em coupés acolchoados, com arias de operas, melancolias de bom gosto e amores d'um gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a musica chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu prazer—pensando que vai voltar á dureza das côdeas sêccas e á poeira dos caminhos.

No emtanto Thereza, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga aria inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:


The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...


—Bravo! bravo! exclamou o ministro da justiça apparecendo á porta, batendo dôcemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!

—Tenho um pedido a fazer-lhe, snr. Correia, disse Thereza erguendo-se logo.

O ministro veio, com uma pressa galante:

—Que é, minha senhora? que é?

O conde e o sujeito de magnificas suiças tinham entrado discutindo ainda.

—A Joanna e eu temos que lhe pedir, disse Thereza ao ministro.

—Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.

—Mas, minhas senhoras, disse o ministro sentando-se confortavelmente, com as pernas muito estiradas, a face satisfeita: de que se trata? É uma coisa grave? meu Deus! prometto, prometto solemnemente...

—Bem, disse Thereza batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a melhor parochia vaga?

—Ah! disse o ministro comprehendendo e olhando para Amaro, que vergou os hombros, córado.

O homem das suiças, que estava de pé fazendo saltar circumspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de informações:

—Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do districto e séde do bispado.

—Leiria? disse Thereza. Bem sei, é onde ha umas ruinas?

—Um castello, minha senhora, edificado por D. Diniz.

—Leiria é excellente!

—Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, séde do bispado, uma cidade... O senhor padre Amaro é um ecclesiastico novo...

—Ora, snr. Correia! exclamou Thereza, e o senhor não é novo?

O ministro sorriu, curvando-se.

—Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.

—Parece-me inutil, o pobre Correia está vencido! A prima Thereza chamou-lhe novo!

—Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja excepcional; eu não sou tambem tão antigo...

—Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820!

—Era meu pai, calumniador, era meu pai!

Todos riram.

—Snr. Correia, disse Thereza, está entendido. O senhor padre Amaro vai para Leiria!

—Bem, bem, succumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tyrannia!

Thank you, fez Thereza, estendendo-lhe a mão.

—Mas, minha senhora, estou a estranhal-a, disse o ministro fixando-a.

—Estou contente hoje, disse ella. Olhou um momento para o chão, distrahida, dando pequeninas pancadas no vestido de sêda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a dôce aria ingleza:


The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...


Entretanto o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.

—É negocio feito, disse-lhe elle. O Correia entende-se com o bispo. D'aqui a uma semana está nomeado. Póde ir descansado.

Amaro fez uma cortezia e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:

—Senhor ministro, eu agradeço...

—Á senhora condessa, á senhora condessa, disse o ministro sorrindo.

—Minha senhora, eu agradeço, veio elle dizer á condessa, todo curvado.

—Ai, agradeça a Thereza! Ella quer ganhar indulgencias, parece.

—Minha senhora... foi elle dizer a Thereza.

—Lembre-me nas suas orações, senhor padre Amaro, disse ella. E continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano—as tristezas da aldeia quando Lubin esta ausente!


Amaro d'ahi a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornára a esquecer aquella manhã em casa da senhora condessa de Ribamar,—o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, promettendo o seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes... Cantava-lhe sempre no cerebro aquella aria triste do Rigoleto; e perseguia-o a brancura dos braços de Thereza sob a gaze negra! Instinctivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso do rapaz louro:—detestava-o então, e a língua barbara que fallava, e a terra heretica d'onde viera; e latejavam-lhe as fontes á idéa de que um dia poderia confessar aquella mulher divina e sentir o seu vestido de sêda preta roçar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionario.

Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços da tia, partiu para Santa Apolonia, com um gallego que lhe levava o bahú. A madrugada rompia. A cidade estava silenciosa, os candieiros apagavam-se. Ás vezes uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe interminaveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; n'uma ou n'outra rua uma voz aguda já apregoava os jornaes; e os moços dos theatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.

Quando chegou a Santa Apolonia a claridade do sol alaranjava o ar por detraz dos montes da Outra-Banda: o rio estendia-se, immovel, riscado de correntes de côr de aço sem lustre; e já alguma vela de falua passava, vagarosa e branca.



IV



Ao outro dia, na cidade, fallava-se da chegada do parocho novo, e todos sabiam já que tinha trazido um bahú de lata, que era magro e alto, e que chamava Padre-Mestre ao conego Dias.

As amigas da S. Joanneira,—as intimas—a D. Maria da Assumpção, as Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa d'ella para se pôrem ao facto... Eram nove horas; Amaro sahira com o conego. A S. Joanneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas arregaçadas, nos arranjos da manhã; e immediatamente, com animação, contou a chegada do parocho, as suas boas maneiras, o que tinha dito...

—Mas venham vossês cá abaixo, sempre quero que vejam.

Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o bahú de lata, uma prateleira que lhe arranjára para os livros.

—Está muito bem, está tudo muito bem, diziam as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito, como n'uma igreja.

—Rico capote! observou D. Joaquina Gansoso apalpando o panno das largas bandas que pendiam ao comprido do cabide. —É obra para um par de moedas!

—E a boa roupa branca! disse a S. Joanneira erguendo a tampa do bahú.

O grupo das velhas curvou-se com admiração.

—A mim o que me consola é que elle seja um rapaz novo, disse D. Maria da Assumpção, piedosamente.

—Tambem a mim, disse com auctoridade a D. Joaquina Gansoso. Estar a gente a confessar-se e a vêr o pingo do rapé, como era com o Raposo, credo! até se perde a devoção! E o bruto do José Migueis! Não, lá isso Deus me mate com gente nova!

A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do parocho,—um crucifixo que estava ainda embrulhado n'um jornal velho, o album de retratos, onde o primeiro cartão era uma photographia do Papa abençoando a christandade. Todas se extasiaram.

—É o mais que se póde, diziam, é o mais que se póde!

Ao sahir, beijando muito a S. Joanneira, felicitaram-na porque adquirira, hospedando o parocho, uma auctoridade quasi ecclesiastica.

—Vossês apparecem á noite, disse ella do alto da escada.

—Pudera!... gritou D. Maria da Assumpção, já á porta da rua, traçando o seu mantelete. —Pudera!... Para o vermos á vontade!

Ao meio dia veio o Libaninho, o beato mais activo de Leiria; e subindo a correr os degraus, já gritava com a sua voz fina:

—Ó S. Joanneira!

—Sobe, Libaninho, sobe, disse ella, que costurava á janella.

—Então o senhor parocho veio, hein? perguntou o Libaninho, mostrando á porta da sala de jantar o seu rosto gordinho côr de limão, a calva luzidia; e vindo para ella com o passinho miudo, um gingar de quadris:

—Então que tal, que tal? tem bom feitio?

A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura dos seus dentes...

—Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota. —Mas não se podia demorar, ia para a repartição! —Adeus, filhinha, adeus! —E batia com a sua mão papuda no hombro da S. Joanneira. —Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei hontem a Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!

A criada tinha entrado.

—Adeus, Ruça! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãi dos Homens. —E avistando Amelia pela porta do quarto entreaberta:—Ai, que estás mesmo uma flôr, Mélinha! Quem se salvava na tua graça bem eu sei!

E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada rapidamente, ganindo:

—Adeusinho! adeusinho, pequenas!

—Ó Libaninho, vens á noite?

—Ai, não posso, filha, não posso! —E a sua vozinha era quasi chorosa. —Olha que ámanhã é Santa Barbara: tem seis Padre-Nossos de direito!


Amaro fôra visitar o chantre com o conego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta de recommendação do senhor conde de Ribamar.

—Conheci muito o senhor conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: ha que annos isso vai!

E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, fallou com satisfação do seu tempo: contou anecdotas da Junta, apreciou os homens de então, imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excellencia), os tics, as caturrices—sobretudo Manoel Passos, que elle descrevia passeando na Praça Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéo de grandes abas, dizendo:

Animo, patriotas!o Xavier aguenta-se!

Os senhores ecclesiasticos da camara riram com gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro sahiu muito lisonjeado.

Depois jantou em casa do conego Dias, e foram passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma luz dôce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga tranquilidade; fumos esbranquiçados sahiam dos casaes, e sentiam-se os chocalhos melancolicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da ponte, e disse, olhando em redor a paizagem suave:

—Pois senhores, parece-me que me hei de dar bem aqui!

—Ha de se dar regaladamente, affirmou o conego, sorvendo o seu rapé.

Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joanneira.

As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candieiro de petroleo, Amelia costurava.

A snr.a D. Maria da Assumpção vestira-se, como nos domingos, de sêda preta: o seu chinó, d'um louro avermelhado, estava coberto com as rendas d'um enfeite negro; as mãos descarnadas, calçadas de mitenes, solemnemente pousadas no regaço, reluziam de anneis; do broche sobre o pescoço até ao cinto, um grosso grilhão d'ouro cahia com passadores lavrados. Conservava-se direita e ceremoniosa, com a cabeça um pouco de lado, os oculos d'ouro assentes sobre o nariz acavallado: tinha no queixo um grande signal cabelludo; e quando se fallava de devoções ou de milagres dava um geito ao pescoço, e abria um sorriso mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas. Era viuva e rica, e soffria d'um catarrho chronico.

—Aqui tem o senhor parocho novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joanneira.

Ella ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, commovida.

—Estas são as senhoras Gansosos, ha de ter ouvido... , disse a S. Joanneira ao parocho.

Amaro comprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum dinheiro, mas costumavam receber hospedes. A mais velha, a snr.a D. Joaquina Gansoso, era uma pessoa sêcca, com uma testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu chale, direita, com os braços cruzados, fallava perpetuamente, n'uma voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal dos homens e dava-se toda á Igreja.

A irmã, a snr.a D. Anna, era extremamente surda. Nunca fallava, e com os dedos cruzados sobre o regaço, os olhos baixos, fazia girar tranquillamente os dois pollegares. Nutrida, com o seu perpetuo vestido preto de riscas amarellas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda a noite, e só accentuava a sua presença de vez em quando por suspiros agudos: dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua habilidade em recortar papeis para caixas de dôce.

Estava tambem a snr.a D. Josepha, a irmã do conego Dias. Tinha a alcunha de castanha pilada. Era uma creaturinha mirrada, de linhas aduncas, pelle engelhada e côr de cidra, voz sibilante; vivia n'um perpetuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contracções nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estação central das intrigas de Leiria.

—Então passeou muito, senhor parocho? perguntou ella logo impertigando-se.

—Fomos quasi até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o conego, sentando-se pesadamente por detraz da S. Joanneira.

—Não achou bonito, senhor parocho? acudiu snr.a D. Joaquina Gansoso.

—Muito bonito.

Fallaram das lindas paizagens de Leiria, das boas vistas: a snr.a D. Josepha gostava muito do passeio ao pé do rio; até já ouvira dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a igreja da Encarnação, no alto.

—Desfruta-se muito d'alli.

Amelia disse sorrindo:

—Eu por mim gósto d'aquelle bocado ao pé da ponte, debaixo dos chorões. —E partindo com os dentes o fio da costura:—É tão triste!

Amaro olhou para ella, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito; pescoço branco e cheio sahia d'um collarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes brilhava; e pareceu ao parocho que um buçosinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra subtil e dôce.

Houve um pequeno silencio—o conego Dias com o beiço descahido ia já cerrando as palpebras.

—Que será feito do senhor padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.

—Está talvez com a enxaqueca, pobre de Christo! lembrou piedosamente a snr.a D. Maria da Assumpção.

Um rapaz que estava junto do aparador disse então:

—Eu vi-o hoje a cavallo, ia para os lados da Barrosa.

—Homem! disse logo com azedume a irmã do conego, a snr.a D. Josepha Dias, é milagre ter o senhor reparado!

—Porquê, minha senhora? disse elle erguendo-se e chegando-se ao grupo das velhas.

Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pelle branca, regular, um pouco fatigado, destacava bem um bigode pequeno muito negro, cahido aos cantos, que elle costumava mordicar com os dentes.

—Ainda elle o pergunta! exclamou a snr.a D. Josepha Dias. O senhor, que nem lhe tira o chapéo!

—Eu!?

—Disse-m'o elle, affirmou ella com uma voz cortante. E acrescentou: Ai, senhor parocho, bem póde chamar o snr. João Eduardo para o bom caminho! —E teve um risinho maligno.

—Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse elle rindo, com as mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para Amelia.

—É uma graça! exclamou a snr.a D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje lá em casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não ha de ganhar o céo!

—Ora essa! gritou a irmã do conego voltando-se bruscamente para João Eduardo. Então o que tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é uma impostora?

—Credo, Jesus! disse a snr.a D. Maria da Assumpção apertando as mãos e fitando João Eduardo com um terror piedoso. Pois elle havia de dizer isso? Cruzes!

—Não, o snr. João Eduardo, affirmou gravemente o conego, que espertára, desdobrando o seu lenço vermelho—não era capaz de dizer uma d'essas.

Amaro perguntou então:

—Quem é a Santa da Arregassa?

—Credo! Pois não tem ouvido fallar, senhor parocho? exclamou n'uma admiração a snr.a D. Maria da Assumpção.

—Ha de ter ouvido, affirmava a snr.a D. Josepha Dias com auctoridade. Diz que os jornaes de Lisboa vem cheios d'isso!

—É com effeito uma coisa bem extraordinaria, ponderou com um tom profundo o conego.

A S. Joanneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:

—Ai, não imagina, senhor parocho, é o milagre dos milagres!

—Se é! se é! disseram.

Houve um recolhimento devoto.

—Mas então...? perguntou Amaro, todo curioso.

—Olhe, senhor parocho, começou a snr.a D. Joaquina Gansoso endireitando-se no chale, fallando com solemnidade: a Santa é uma mulher que aqui ha n'uma freguezia perto, que está ha vinte annos na cama...

—Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assumpção, tocando-lhe com o leque no braço.

—Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.

—Vinte e cinco, vinte e cinco, affirmou a S. Joanneira. E o conego apoiou-a, oscillando gravemente a cabeça.

—Está entrevadinha de todo, senhor parocho! rompeu a irmã do conego, avida de fallar. Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto! —E mostrava o dedo minimo. —Para a gente a ouvir é necessario pôr-lhe a orelha ao pé da boca!

—Pois se ella se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a snr.a D. Maria da Assumpção. Coitadinha! que até a gente lembrar-se...

Houve entre as velhas um silencio commovido. João Eduardo, que por traz das velhas, de pé, com as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode, disse então:

—Olhe, senhor parocho, a coisa é o que os medicos dizem: é que aquillo é uma doença nervosa.

Aquella irreverencia fez, entre as velhas devotas, um escandalo; a snr.a D. Maria da Assumpção persignou-se logo «á cautela».

—Pelo amor de Deus! gritou a snr.a D. Josepha Dias, o senhor diga isso diante de quem quizer, menos de mim! É uma affronta!

—É que até póde cahir um raio, dizia para os lados, baixo, a snr.a D. Maria da Assumpção, muito aterrada.

—Olhe, tambem lh'o digo, exclamou a snr.a D. Josepha Dias, o senhor é um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas. —E voltando-se para o lado de Amelia, muito azeda:—Olhe, filha minha é que eu lhe não dava!

Amelia córou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho tambem, curvou-se sarcasticamente:

—Eu digo o que dizem os medicos. E de resto, acredite que não tenho prentenções a casar com pessoa da sua familia! Nem mesmo comsigo, snr.a D. Josepha!

O conego deu uma risada muito pesada.

—Arreda! Cruzes! gritou ella, furiosa.

—Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.

—Tudo, senhor parocho, disse a snr.a D. Joaquina Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ella peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ella e cura-se de toda a molestia. E depois, quando communga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o céo, que até chega a fazer terror.

Mas n'este momento uma voz disse á porta da sala:

—Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!

Era um rapaz extremamente alto, amarello, com as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode á D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quasi todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mão.

—Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.

—Mal, respondeu elle com voz triste, sentando-se. Sempre as dôres no peito, a tossesita ...

Então não se dava bem com o oleo de figados de bacalhau?

—Qual! fez elle desconsoladamente.

—Uma viagem á Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a snr.a D. Joaquina Gansoso com auctoridade.

Elle riu, com uma jovialidade subita:

—Uma viagem á Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense de administração com dezoito vintens por dia, mulher e quatro filhos... Para a Madeira!

—E como vai ella, a Joannita?

—Coitadita, lá vai! Tem saude, graças a Deus! Gorda, sempre com bom appetite. Os pequenos, os dois mais velhos é que estão doentes; de mais a mais agora a criada tambem cahiu de cama! É o diacho! Paciencia! paciencia! —E encolhia os hombros.

Mas voltando-se para a S. Joanneira, dando-lhe uma palmada no joelho:

—E como vai a nossa Madre-Abbadessa?

Todos riram: e a snr.a D. Joaquina Gansoso informou o parocho que aquelle rapaz, o Arthur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bella voz. Era a melhor da cidade para modinhas.

A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joanneira, enchendo as chavenas d'alto, dizia:

—Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do Sousa...

E Arthur offerecia assucar com o seu antigo gracejo:

—Se está azedinho é carregar-lhe no sal!

As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as torradas, sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das nodoas do chá estendiam prudentemente os lenços sobre o regaço.

—Vai um docinho, senhor parocho? disse Amelia, apresentando-lhe o prato. São da Encarnação, muito fresquinhos.

—Obrigado.

—Aquelle alli. É toucinho do céo.

—Ah! se é do céo... disse elle todo risonho. E olhou para ella, tomando o bolo com a ponta dos dedos.

O snr. Arthur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de musica; e Amelia, logo que a Ruça levou a bandeja, accommodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarello.

—Então hoje que ha de ser? perguntou Arthur.

Os pedidos cruzaram-se:

O guerrilheiro!O noivado do sepulchro!O descrido!o Nunca mais!

O conego Dias disse do seu canto, pesadamente:

—Ó Couceiro, vá lá aquella do Tio Cosme, meu bréjeiro!

As mulheres reprovaram:

—Credo! por quem é, senhor conego! Que lembrança!

E a snr.a D. Joaquina Gansoso resumiu:

—Nada: uma coisa de sentimento para o senhor parocho fazer idéa.

—Isso, isso! disseram: uma coisa de sentimento, ó Arthur, uma coisa de sentimento!

Arthur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente á face uma expressão dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente: