Poesias Eroticas, Burlescas, e Satyricas de M.M. de Barbosa du Bocage / não comprehendidas na edição que das obras d'este poeta se publicou em Lisboa, no anno de MDCCCLIII.

Poesias Eroticas, Burlescas, e Satyricas de M.M. de Barbosa du Bocage / não comprehendidas na edição que das obras d'este poeta se publicou em Lisboa, no anno de MDCCCLIII.
Author: Manuel Maria Barbosa du Bocage
Pages: 207,223 Pages
Audio Length: 2 hr 52 min
Languages: pt

Summary

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Tu não podes saber, querida Alzira,
Com que alegria as cubiçadas lettras
Da tua Olinda foram recebidas!
Não o podes saber, nem eu dizer-to.
Que pura locução, que Amor ensina!
Quam diff'rente linguagem da que falam
Os livros, que me dá o meu Bellino!
N'elles descubro o sensual estylo
Que a modestia revolta, e que não quadra
Ás puras sensações, que Amor excita.
Phrase brutal, sem arte, e sem melindre,
Qual despejada plebe usar costuma;
N'elles de Amor os gostos enxovalha
Mysterioso véo, que arrancar ousam
Com mão profana d'ante o sanctuario
Que Amor encerra, e d'onde o deus occulto
Manda aos mortaes um cento de venturas.
D'elles o numen foge, e por castigo
Leva apoz si deleites, que não provam:
Em vez de graças mil, de mil prazeres
Priapeo tropel impios incensam.
Dá-me tedio a lição de escriptos torpes,
Onde o prazer fugaz, lassos os membros,
Sob mil fórmas em vão se perpetua.
Lassos os membros, lassos os sentidos,
Debalde esgotam, soffregos de gostos,
De impudicicia innumeraveis gestos.
Morre a chamma, que amor mutuo não sopra;
Como é vil a expressão, e é vil o goso
Que uma Thereza, que outras taes francezas
Em impuros bordeis gabar se uffanam!
Foi-me preciso, Alzira, usar do imperio
Que a um fraco sexo deleitosos modos
Fagueiros, ternos emprestar costumam,
Para do amante meu obter a custo
De obscenas producções o sacrificio,
Que o coração corrompem, e devassam
Puros desejos, sentimentos doces.
Mostrei-lhe que o prazer esmorecia
De amavel illusão sem os preludios;
E que, apezar dos seus vivos protestos,
Se os sentidos assás lisonjeava,
Mil emoções gostosas embotando,
Impellido a gosar continuamente,
Escravo do prazer na sua amante
Não fartaria hydropicos desejos:
Ardentes Messallinas buscaria,
Entre os braços das quaes mais facil era
Á vida termo pôr, que saciar-se.
Cedeu às minhas supplicas, e agora
Grato me diz — que se elle da ventura
O caminho me abriu, eu n'elle o guio:
Assim, quando os sentidos fatigados
De amor se negam a esgotar delicias,
Mana do coração inexhaurivel
Prolifica virtude, que os alenta.
Assim de gostos perennaes correntes
Franquêa Amor, a quem o não profana:
De Amor os gosos são como o diamante,
Que, sem o engaste que tocar-lhe véda,
Perdera a polidez, perdera o brilho.
Ame o lascivo o mau, o torpe o obsceno:
Eu em tuas expressões aprendo, Alzira,
Como a ternura impera nos sentidos:
E d'um, e d'outro regulando as forças,
De amorosos tropheos requinta a gloria.
O sensual atolla-se nos vicios,
Cujo infesto vapor todo o corria
De lançar-lhe no tumulo o esqueleto;
D'outra arte aquelle, que libar suavisa
Nectar, que Amor esparge aos seus validos,
Das rugas, e das cans não teme o estrago;
Que nos ultimos annos pode ainda
Em seu transporte Amor beijar na face.
Mas que exiges de mim?Pensas, Alzira,
Que a rude Olinda como tu descreva
A emmanação dos gostos, que se provam
Quando o primeiro amor os desenvolve
Da terna virgem no innocente peito?
Reclamas a candura, de que usava
Antes de me illustrar de Amor o facho?
Ousas mesmo increpar-me de artificio,
Porque eu não sube delicada têa
Urdir aos olhos teus, porque eu não sube
As effusões de amor envolver n'ella,
E, qual me envias, dar-te digna offerta?
Basta, tu mandas; vou obedecer-te.
Tenho ante os olhos instrucções sobejas
Para pintar o quadro dos deleites
Que de dous entes n'um absortos brotam.
Tu me dás os pinceis, o molde, as côres;
E no meu coração, prezada amiga,
Fecunda o goso meigos sentimentos,
Que só acabarão, se amor acaba!…
Que chimericos ceos fórma a impostura!..
Aonde móres delictas se promettem
Que as de um amante, d'outro ao lado unido?
Eu sonhava illusões, antes que fosse
Nos mysterios de amor iniciada.
Errava de um em outro labyrintho,
D'onde os conselhos teus, amada Alzira,
E Amor, dando-me o fio de Ariadna
Me fizeram sair: deixam-me forças
Para abafar o monstro, que meus dias
Tinha de funestar com vãos temores,
Filhos do erro vil, da fraude abortos.
Qual vaguêa nas trevas sem acordo
Perdido o tino, afflicto o caminhante,
D'alta terra entre as faldas pedregosas,
Ou de invia selva na espessura vasta;
Aqui tropeça, ali se encontra, e bate,
Macera as mãos, o rosto, e tenteando
Um pé lhe escapa, cai, rola-se o triste,
E n'um barathro crê despedaçar-se;
Eis improvisa luz assoma ao longe;
Attenta o infeliz, toma-a por norte,
E dos p'rigos, que o cercam, se vê salvo:
Taes tuas lettras para mim brilharam
Na escuridão fatal, que me envolvia.
Não espaçou Amor ditoso prazo
Para no gremio seu a tua Olinda
Bemfazejo accolher.Vira eu Bellino
Passar uma, e mil vezes, attentando
Com interesse em mim, attentei n'elle,
Em seu terno olhar, e meigos gestos;
Vi que um amante o ceo me destinava:
Em breve os olhos meus lhe responderam
Ás mudas expressões, que os seus diziam:
Em breve as suas cartas, de amor cheias,
Fizeram dar egual calor ás minhas,
Accendendo os meus férvidos transportes.
N'uma cerrada noute, quando ao somno
Estava tudo entregue, Amor velando
No meu peito, e no seu, a vez primeira
Nos ajuntou em fim: elle exultava
De indizivel prazer: eu me sentia
Na agitação maior de gosto, e susto.
Ao dar-lhe a mão, para o guiar de manso
Té ao aposento meu, subito fogo
Calou-me as vêas, penetrou-me toda.
Mas quando, já fechados um com outro,
Vi que seus gestos, mais que suas vozes,
Sua ternura ousada me exprimiam,
Lembrou-me o p'rigo, a que me havia exposto.
Tarda lembrança, que cedia a embates
De ignoto medo, que o rubor gerava!
Queria eu impedir-lhe ardentes beijos,
Mas vedavam-no as chammas, que accendiam;
E ás primeiras caricias insensivel,
Luctando entre o pudor, e entre o desejo,
Em mil contrarias reflexões absorta,
Meu silencio e inacção a empresas novas
De maior valor, Bellino excitaram:
Confesso, que devéras quiz oppôr-me
A seus intentos no primeiro instante:
Porém pouco tardou que abrazeada
Em chammas voluptuosas, resistindo
A seus esforços, mais lhe franqueava
Facil accesso a proximos triumphos.
Sentado junto a mim, lançando um braço
Em redor do meu collo, até cingir-me.
E obrigar-me a chegar ao seu meu rosto;
Com a mão sobre os peitos inquieta,
Que ao crebro palpitar os apressava;
E os labios discorrendo os olhos, faces,
Té fixal-os nos meus, ou por entre elles
Confundindo os alentos, lançar chammas
Dentro em meu coração, qual facho acceso;
A ardente lingua sua unindo á minha,
Ou, sobre o seio meu calando a bôca,
N'elle impressos deixar seus proprios beiços.
Com mão mais temeraria, do vestido
Pela abertura a occultos attractivos
Indo o fogo atear…Ah!que eu não pude
Mais resistencia oppôr a seus desejos!
Apenas leve fisga separando
Um dedo seu, que um raio parecia,
Tocou o sitio onde os deleites moram,
Subito, alvorotados uns com outros
Travando estranha lucta, me levaram
Onde, fóra de mim, quasi sem vida,
Só quanto então gosei, gosar podia.
Dos membros todos foram engolphar-se
As sensações ali; e só tornaram
A ser o que eram, quando ao mesmo tempo
Sua potencia intrinseca exhalando;
Fiquei de todo languida, e abatida:
O perverso Bellino attentos olhos
Nos meus então fitando, quiz ler n'elles
De que ficções minha alma se occupava.
Foi extremo o rubor, que de improviso
Minhas faces tingiu: lancei-lhe os braços,
Escondendo meu rosto no seu peito,
Por não poder suster-lhe as doces vistas.
A minha terna acção atraiçoou-me:
Que o maligno, pegando-me do rosto
Com ambas suas mãos, mais me encarava;
De confusa me ver folga, e se ufana,
Com beijos mil parece devorar-me;
Entre os seus braços mais e mais me aperta,
E pouco a pouco sobre mim se inclina:
Minha cabeça no sophá encosta,
Meus pendentes pés trava, e os submette
Entre os seus mesmos té que, em fim, de todo
Senti do corpo seu o pezo grato.
Meu leito era defronte: mas Bellino
No largo canapé circ'lo bastante
Habil athleta achou para o combate.
Perplexa, em mil affectos engolphada,
Irada, enternecida, em cruel lucta,
Meus sentimentos todos labutavam:
Um timido pudor activos fogos
Contrariava em vão, em vão retinha
Ignotos medos, soffregos desejos:
Suspensa, e curiosa eu esperava
Gostosa scena, em que prolixas noutes
Pensando o que seria, despendêra.
Em quanto d'esta sorte embellezado
Me tinham taes idéas, já Bellino
No phrenesi maior de gráu, ou força,
Os meus secretos votos preenchia.
Em torno da cintura levantados
Meus trajos inferiores, sobre os joelhos
Sentindo os de Bellino desprendidos,
Alargando-me os pés, tomando entre elles
Vantajosa attitude a seus projectos,
Franqueando co'a mão facil entrada
Á chammejante lança, que tocava
O mesmo sitio, que invadíra o dedo:
Forcejou para ferir-me com seus golpes,
Com impeto tamanho, com tal raiva
Que nem dos gritos meus se commovia,
Nem podia o meu pranto apiedal-o;
C'o forte impulso as movediças carnes
Levava-me ás entranhas; da ferida
Corria o sangue, mas sem que podesse
Ao ferro assolador achar bainha.
Seus dedos sanguinarios finalmente
D'uma, e outra parte com vigor sustendo
Flexiveis membros, redobrando as forças
Da valente impulsão, a cruel lança
Rompeu cruento ingresso…traspassou-me.
Que dor, Alzira!…Dei tão alto grito
Que Bellino depois disse o assustára,
Bem que fosse de meus páes distante o quarto.
Sem sentidos fiquei, em quanto o amante
Os trophéos da victoria recolhia;
E só tornei a mim, quando ao meu sangue
Suave irrigação veiu mesclar-se,
A agitações de gosto a dor cedendo,
De gosto inexhaurivel, que provára.
N'um momento apertada com Bellino,
N'activa sensação toquei com elle
A meta das delicias, transportada
De muito mais prazer do que a dor fôra.
N'este instante convulsa, e delirante,
E como se um espasmo supportasse,
Intirissada toda, os meus alentos
Senti reconcentrar-se n'um só ponto.
Findava o meu amante, inda eu gosava
(Comprimindo-o comigo) altas venturas,
De que sedenta então não poderia
Fartar-me assás: meus braços exhauridos,
Meu collo, e pés, eu toda fatigada
Do vehemente tremor, em que lidára.
Caí prostrada, quasi semi-morta.
Quando a meus olhos (que caligens densas
Tinham coberto) a luz tornou de novo,
Volvi-os sobre o amante, de tal sorte
Que ao vêl-o já supplice o instigava:
Não ficava ocioso n'este tempo,
Que no exame gastou do entrado forte,
Pasmado dos estragos, que fizera,
E dos despojos, que lucrava alegre.
Da machina, que a praça expugnou firme,
A estructura e altivez eu divisando,
Custava-me a atinar como podéra
Plantar-se o obelisco no reducto estreito.
Bellino minhas vistas comprehendendo,
Fez-me sentir, forçando-me a tocal-o,
Marmorea rigidez, côr escarlate,
Fórma, e calor de obuz, que disparava.
Quando submisso, da peleja lasso,
O vi depois sem o estendido conto,
Brancas roupas trajava, mais humilde:
Mas agora, affrontado, arremeçando
Monarcha ufano, a purpura do collo,
Com furor ao combate se aprestava.
Reverberou seu fogo em minhas faces,
E a vêa e vêa d'ellas espalhado
De todo o corpo me filtrou os membros.
Da lascivia ao pudor jungindo o pezo,
Fez-me Bellino levantar, e tendo
Elle sentado unidos os joelhos,
Sobre elles me sentou, e franco accesso
Da lança abrindo á ponta, a foi de manso
No riste pondo, té que a meio conto
N'elle embebida, sobre si de todo
Levando o pezo meu, entrou de modo
Que fiquei té ás visceras varada.
A introducção tão forte pouco affeitos
Meus delicados membros se avexaram:
Mas curvando-me um pouco, e com justeza,
Achei convir ao estojo o instrumento;
Cuja palpitação, sem ajustar-nos,
Em cadencia reciproca alliada,
Bastava a provocar gosto indizivel,
De modo que sem mais fadiga eu pude,
Na grata posição Bellino immovel,
Attingir o prazer mais saboroso,
Nadar em mil deleites engolphada:
Aqui, amada Alzira, essa virtude
Que appellidam pudor, foi-me odiosa.
De seus grilhões liberta, possuida
De um venereo furor, impaciente
De comprimir a mim o charo amante,
Arranquei-me da lubrica attitude,
Sobre elle me arrojei, toda anciosa
De me identificar c'o meu Bellino;
Estreitada com elle, abandonada
De amor á raiva, que ambos incendia,
Sobre mim o arrastei junto do leito,
Onde ao meu peito o seu, aos seus meus labios,
Do corpo os membros todos enlaçados
Misturando nos osculos o alento,
Nos osculos libando doce nectar,
Em tal agitação, que aos ceos alçar-me,
E abater-me aos abysmos parecia;
Ávida de absorver a grossa lança,
De soffrer-lhe a rijeza diamantina,
E de arrostar-lhe os golpes incessantes,
Sentindo o instante em que violento impulso
De celeste effusão marcava o termo,
Nas mãos, e nos pés sós firmando o corpo,
Tanto me impertiguei, que o meu amante
Sustive sobre mim, suspenso, em quanto
Aos finaes paroxismos succumbindo
Ao meu uniu seu ultimo gemido,
E dentro das entranhas abrazadas
Lançando-me torrentes d'almo influxo,
submersa me deixou n'um mar de gosos.
Julgas, Alzira, que entre tanto gosto
Na assidua compressão me não doiam
As maceradas meliadrosas carnes?
Ah!que esta dor pelo prazer vencida
Irritava emoções deliciosas,
Sobre-elavava ás sensações mais gratas.
Qual sequioso cervo, repassado
Da calmosa avidez, suaves gotas
Rabido anhela, e quanto é mais soffrida
Ardente sêde, tanto mais ensopa
Uma, e outra vez insaciaveis fauces:
Não d'outra sorte flagellados membros
Da dor pungindos de crueis combates,
Balsamica emoção consoladora
Com avidez seccavam insoffridos:
A elluvião prolifica eu sentia,
Pruridos divinaes, e estremecendo
Á melliflua impressão, perennaes gosos
Bastante tempo apoz gosava ainda.
N'este instante expirou dentro em minh'alma
Temor nefando, que immolava ao culto.
Nova moral raiou de Olinda aos olhos;
Eu tive em pouco rispidos preceitos,
Ameaças crueis, com que ralavam
Meus annos infantís.Doeu-me, Alzira,
De ver tanta belleza definhada
Da hypocrisia victimas infaustas;
Aponta a edade, em que é d'amor forçoso
As delicias gosar; em que almo viço
Como nas plantas, n'ellas assignalam:
Grata reproducção comsigo abafam,
Envenena-se o germen da natura,
Infecção purulenta as vai minando,
Que seus dias termina, ou os condemna
A languida existencia: abate o corpo,
Abate o esp'rito corruído o alento.
Innovámos a acção, eu, e Bellino,
E eguaes em forças, sem perder coragem,
Nenhum de nós cedeu, bem que durasse
Algumas horas o combate acceso:
Mas da noute feliz o longo manto
Que os mysterios de amor commette ás trevas,
Com roseos dedos a invejosa Aurora
Cruel abrindo, faz dentro em meu peito
A escuridão entrar, que em torno tinha.
Foi-me odiosa a luz, que affugentava
De mim com o amor perennes delicias.
Uma e outra vez Amor tem facultado
Ao constante Bellino, á terna Olinda
Outros, como estes, prosperos momentos:
São de tormento para mim os dias
Que tel-o junto a mim debalde busco:
Para elle o tempo que sem ver-me gasta,
Figura-lhe de um seculo a distancia.
Já Hymenêo houvera de enlaçar-nos,
Se o mundo, Alzira, o mundo, que não cuida
Senão em machinar sua ruina,
De longo tempo não tivesse urdido
Iniquas tramas, horridas ciladas,
Que ao homem (digno premio de sua obra)
Barreiras põe na estrada da ventura.
Retrocede o infeliz d'um a outro lado,
Negras voragens abre ante os seus passos
Tropel de Furias, que comsigo arrasta,
Filhas do Erro, que animou insano.
A Fortuna que foi comigo larga,
Negou seus dons a meu querido amante.
Elle não conta nobres ascendentes,
De quem meus páes se dizem oriundos:
É quanto basta, para erguer muralhas
De alcance, entre elle e mim, inacessiveis:
O ditoso hymenêo não me é preciso,
O hymenêo, apparato de teus votos,
Para entre os braços seus tecer affouta
Indissoluveis nós c'o meu Bellino:
Sou d'elle, é meu: os homens que se ralem.
Alzira, tu, que a amor meu peito abriste,
Abre meus olhos á Natura inteira:
Eu quero n'ella ver os meus destinos;
Só n'ella eu quero divinaes verdades
Solicita explorar, viver só n'ella:
Cumpre as gratas promessas, que me fazes,
Deva a ti só a tua Olinda tudo.
Não ha para os christãos um Deus diff'rente
Do que os gentios teem, e os musulmanos?
O que a razão desnega, não existe:
Se existe um Deus, a Natureza o offerece;
Tudo o que é contra ella, é offendel-o.
Devo eu seguir o culto, que me apontam
As impressões da propria Natureza?
Tenho uma religião em pratical-as?
Que mundo é este pois, prezada Alzira?
Teem os homens levado o seu arrojo
Té forjarem um Deus na ousada mente,
Traçar-lhe cultos, levantar-lhe templos,
Attribuir-lhe leis, que a ferro, e fogo
Extranhos povos a adorar constrangem,
Immolando milhões á gloria sua?
Nos labios teem doçura, e probidade,
No coração o fel, a raiva: os monstros
São máus por condição, ou máus por erro?
Não, eu não posso, Alzira, d'este enigma
Romper o denso véo: minhas idéas
Jazem n'um cahos de horrida incerteza:
Hesitar me não deixes por mais tempo:
Minha instrucção confio aos teus cuidados;
D'amizade o esplendor dá-te a mim toda;
Acaba de fazer-me de ti digna.

SONETOS.


I

Tendo o terrivel Bonaparte á vista,
Novo Annibal, que esfalfa a voz da Fama,
«Oh capados heróes!(aos seus exclama
Purpureo fanfarrão, papal-sacrista):
«O progresso estorvai da atroz conquista
«Que da philosophia o mal derrama!…»
Disse, e em férvido tom saúda, e chama,
Sanctos surdos varões por sacra lista:
D'elles em vão rogando um pio arrojo,
Convulso o corpo, as faces amarellas,
Cede triste victoria, que faz nojo!
O rapido francez vai-lhe ás canellas;
Dá, fere, mata; ficam-lhe em despojo
Reliquias, bullas, merdas, bagatellas.

II

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um d'aquelles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o theologo, o peralta,
Algum duque, ou marquez, ou conde, ou frade:
Não quero funeral communidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu tambem vos dispenso a charidade:
Mas quando ferrugenta enchada idosa
Sepulchro me cavar em ermo Outeiro,
Lavre-me este epitaphio mão piedosa:
«Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou vida folgada, e milagrosa;
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.»

III

Esse disforme, e rigido porraz
Do semblante me faz perder a côr;
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para traz:
A espada do membrudo Ferrabraz
De certo não mettia mais horror:
Esse membro é capaz até da pôr
A amotinada Europa toda em paz:
Creio que nas fodaes recreações
Não te hão de a rija machina soffrer
Os mais corridos, sordidos cações:
De Venus não desfructas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.

IV

N'um capote embrulhado, ao pé de Armia,
Que tinha perto a mãe o chá fazendo,
Na linda mão lhe fui (oh ceos!)mettendo
O meu caralho, que de amor fervia:
Entre o susto, entre o pejo a moça ardia:
E eu solapado os beiços remordendo,
Pela fisga da saia a mão crescendo
A chamada sacana lhe fazia:
Entra a vir-se a menina…Ah!que vergonha!
«Que tens?— lhe diz a mãe sobresaltada:
Não pode ella encobrir na mão langonha:
Suffocada ficou, a mãe corada;
Finda a partida, e mais do que medonha
Á noute começou da bofetada.

V

No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França:
Este, com mogigangas de creança,
Com a mão pelos evos encrespada,
Brandia sobre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança:
Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo menêa, e súa o bicho,
Que em Bocage o tezão vence a vergonha:
Quiz vir-se por luxuria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-lhe alva langonha
Rebenta-lhe do cú merdoso esguicho.

VI

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas teem reinado:
Dido foi puta, e puta d'um soldado;
Cleopatra por puta alcança a c'rôa;
Tu, Lucrecia, com toda a tua prôa,
O teu cono não passa por honrado:
Essa da Russia imperatriz famosa,
Que inda ha pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isto de Virgo e honra é tudo peta.

(D.)

VII

Tu, oh demente velho descarado,
Escandalo do sexo masculino,
Que por alta justiça do Destino
Tens o impotente membro decepado:
Tu, que em torpe furor incendiado
Soffres d'impia paixão ardor maligno,
E a consorte gentil, de que és indigno,
Entregas a infructifero castrado:
Tu, que tendo bebido o menstruo immundo,
Esse amor indiscreto te não gasta
D'impia mulher o orgulho furibundo:
Em castigo do vicio, que te arrasta,
Saiba a inclita Lysia, e todo o mundo
Que és vil por genio, que és cabrão, e basta!

VIII

Vai cagar o mestiço, e não vai só;
Convida a algum, que esteja no Gará,
E com as longas calças na mão já
Pede ao cafre canudo e tambió:
Destapa o banco, atira o seu fuscó,
Depois que ao liso cú assento dá,
Diz ao outro: «Oh amigo, como está
A Rita?O que é feito da Nhonhó?»
«Vieste do Palmar?Foste a Pangin?
Não me darás noticias da Russu,
Que desde o outro dia inda a não vi?»
Assim prosegue, e farto já de gu,
O branco, e respeitavel camarim
Deita fora o cachimbo, e lava o cú.

IX

Arreitada donzella em fofo leito
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras subtís pachocho estreito:
De louro pello um circulo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branda crica, nacarada e liza,
Em pingos vérte alvo liquor desfeito:
A voraz porra as guelras encrespando
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrando:
Como é inda boçal perde os sentidos;
Porém vai com tal ancia trabalhando,
Que os homens é que vem a ser fodidos.

X

Esquentado frisão, brutal masmarro
Girava em Santarem na pobre feira;
Eis que divisa ao longe em couva ceira
Seus bons irmãos seraphicos de barro:
O bruto, que arremeda um boi de carro
Na carranca feroz, parte á carreira,
Os sagrados bonecos escaqueira,
E arranca de ufania um longo escarro:
N'alma o sancto furor lhe arqueja, e berra;
Mas vós enchei-vos de intimo alvoroço,
Povos, que do burel soffreis a guerra:
Que dos bonzos de barro o vil destroço
E presagio talvez de irem por terra
Membrudos fradalhões de carne e osso!

XI

N'esta, cuja memoria esquece á Fama,
Feira, que a Santarem vem de anno em anno,
Jazia co'uma freira um franciscano;
Eram de barro os dous, de barro a cama:
Co'a mão, que á virgindade injurias trama,
Pretendia o cabrão ferrar-lhe o panno;
Eis que um negro barrasco, um Frei Tutano
O espectaculo vê, que os rins lhe inflamma:
«Irra!Vens-me atiçar, gente damnada!
Não basta a felpa dos bureis opacos,
Com que a carne rebelde anda ralada?
«Fora, vís tentações, fora, velhacos!..»
Disse, e ao rispido som de atroz patada
O escandaloso par converte em cacos.

XII

Amar dentro do peito uma donzella;
Jurar-lhe pelos ceos a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia noute na janella:
Fazel-a vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertal-a nos braços casta, e bella:
Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a bocca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de neve os dous pimpolhos:
Vêl-a rendida em fim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto, que ha no mundo.

(D.)

XIII

É pau, e rei dos paus, não marmelleiro,
Bem que duas gamboas lhe lombrigo;
Dá leite, sem ser arvore de figo,
Da glande o fructo tem, sem ser sobreiro:
Verga, e não quebra, como o zambujeiro;
Occo, qual sabugueiro tem o embigo;
Brando ás vezes, qual vime, está comsigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:
Á roda da raiz produz carqueija;
Todo o resto do tronco é calvo, e nú;
Nem cedro, nem pau-sancto mais negreja!
Para carvalho ser falta-lhe um u;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar metta-o no cú.

XIV

Bojudo fradalhão de larga venta,
Abysmo immundo de tabaco esturro,
Doutor na asneira, na sciencia burro,
Com barba hirsuta, que no peito assenta:
No pulpito um domingo se apresenta;
Préga nas grades espantoso murro;
E acalmado do povo o gran susurro
O dique das asneiras arrebenta:
Quatro putas mofavam de seus brados,
Não querendo que gritasse contra as modas
Um peccador dos mais desaforados:
«Não (diz uma) tu, padre, não me engodas:
Sempre me ha de lembrar por meus peccados
A noute, em que me déste nove fodas!»

XV

Aquelle semi-clerigo patife,
Se eu no mundo fizera ainda apostas,
Apostára comtigo que nas costas
O grande Pico tem de Teneriffe:
Celebre traste!É justo que se rife;
Eu tambem prompto estou, se d'isso gostas;
Não haja mais perguntas, nem respostas;
Venha, antes que algum taful o bife:
Parece hermaphrodita o Corcovado;
Pela rachada parte (que appeteço)
Parece que emprenhou, pois anda opado!
Mas d'esta errada opinião me desço:
Pois que traz a creança no costado,
Deve ter emprenhado pelo sesso.

XVI

Porri-potente heróe, que uma cadeira
Sustens na ponta do caralho tezo,
Pondo-lhe em riba mais por contrapezo
A capa de baetão da alcoviteira:
Teu casso é como o ramo da palmeira,
Que mais se eleva, quando tem mais pezo:
Se o não conservas açaimado e preso,
É capaz de foder Lisboa inteira!
Que força tens no horrido marsapo,
Que assestando a disforme cachamorra
Deixa conos e cús feitos n'um trapo!
Quem ao ver-te o tezão ha não discorra
Que tu não podes ser senão Priapo,
Ou que tens um guindaste em vez do porra?

(D.)

XVII

Dizem que o rei cruel do Averno immundo
Tem entre as pernas caralhaz lanceta,
Para metter do cú na aberta greta
A quem não foder bem cá n'este mundo:
Tremei, humanos, d'este mal profundo,
Deixai essas lições, sabida peta;
Foda-se a salvo, coma-se a punheta;
Este o prazer da vida mais jucundo:
Se pois guardar devemos castidade,
Para que nos deu Deus porras leiteiras,
Senão para foder com liberdade?
Fodam-se, pois, casadas e solteiras:
E seja isto já; que é curta a edade,
E as horas do prazer voam ligeiras.

(D.)

XVIII

Nojenta prole da rainha Ginga,
Sabujo ladrador, cara de nico,
Loquaz saguim, burlesco Theodorico,
Osga torrada, estupido resinga:
Eu não te accuso de poeta pinga;
Tens lido o mestre Ignacio, e o bom Suppico;
De occas idéas tens o casco rico,
Mas teus versos tresandam a catinga:
Se a tua Musa nos outeiros campa,
Se ao Miranda fizeste ode demente,
E o mais, que ao mundo estolido se incampa:
É porque sendo, oh Caldas, tão sómente
Um cafre, um goso, um nescio, um parvo, um trampa,
Queres metter nariz em cú de gente.

XIX

Turba esfaimada, multidão canina,
Corja, que tem por Deus ou Momo, ou Baccho,
Reina, e decreta nos covís de Caco
Ignorancia d'aqui, d'ali rapina:
Colhe de alto systema e lei divina
Imaginario jus, com que encha o saco;
Textos gagueja em vão Doctor macaco
Por ouro, que promette alma sovina:
Circulo umbroso de venaes pedantes,
Com torpe astucia de maligno zorra
Usurpa nome excelso, e graus flamantes:
Ora mijei na sucia, inda que eu morra!
Corno, arrocho, bambu nos elephantes,
Cujo vulto é de anões, a tromba é porra!

XX

Magro, de olhos azues, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de faxa, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno:
Incapaz de assistir n'um só terreno,
Mais propenso ao furor do que á ternura,
Bebendo em niveas mãos por taça escura
De zelos infernaes lethal veneno:
Devoto incensador de mil deidades,
(Digo, de moças mil) n'um só momento,
Inimigo de hypocritas, e frades:
Eis Bocage, em quem luz algum talento:
Saíram d'elle mesmo estas verdades
N'um dia, em que se achou cagando ao vento.

XXI

Na scena em quadra tragico-hynvernosa
Zaida se impingiu (fradesco drama!)
Appareceu depois, com sede á fama,
Tragedia mais egual, mais lastimosa:
O auctor prantêa em phrase apparatosa
Esfaqueado arraes, pimpão d'Alfama;
Corno o protagonista, e puta a dama,
O macho é Simeão, e a mula é Rosa:
Espicha o rabo (eu tremo ao proferil-o!)
Espicha o rabo ali o heróe na rua,
Qual Muratão nos areaes do Nilo!
Elmiro na tarefa continúa,
Já todos pela escolha, e pelo estylo
Rosnam que a nova peça é obra sua.

XXII

Não tendo que fazer Apollo um dia
Ás Musas disse: «Irmans, é beneficio
Vadios empregar; dêmos officio
Aos socios vãos da magra Academia:
«O Caldas satisfaça á padaria;
O França d'enjoar tenha exercicio,
E o auctor do entremez do Rei Egypcio
O Pegaso veloz conduza á pia:
«Vá na Ullysséa tasquinhar o ex-frade;
Da sala o Quintanilha accenda as velas,
Em se juntando alguma sociedade:
«Bernardo nenias faça, e cague n'ellas:
E Belmiro, por ter habilidade,
Como d'antes trabalhe em bagatellas.»

XXIII

Rapada, amarellenta cabelleira,
Vêsgos olhos, que o chá, e o doce engoda,
Bôca, que á parte esquerda se accommoda,
(Uns affirmam que fede, outros que cheira:)
Japona, que da ladra andou na feira;
Ferrujento faim, que já foi moda
No tempo em que Albuquerque fez a poda
Ao suberbo Hidalcão com mão guerreira:
Ruço calção, que espórra no joelho,
Meia e sapato, com que ao lodo avança,
Vindo a encontrar-se c'o esburgado artelho:
Jarra, com appetites de creança;
Cara com similhança de besbelho;
Eis o bedel do Pindo, o doctor França.

XXIV

Pilha aqui, pilha ali, vozêa auctores,
Montesquieu, Mirabeau, Voltaire, e varios;
Propõe systemas, tira corollarios,
E usurpa o tom d'emphaticos doctores:
Sciencia de livreiros e impressoras
Tem da vasta memoria nos armarios;
E tractando os christãos de visionarios,
Só rende culto a Venus, e aos Amores:
A mulher, que a barriga lhe tem fôrra
Do jugo da vital necessidade,
Deixa em casa gemer como em masmorra:
Este biltre, labéo da humanidade,
É um tal bacharel Leitão de borra,
Lascivo como um burro, ou como um frade.

XXV

Não chores, chara esposa, que o Destino
Manda que parta, á guerra me convida;
A honra prézo mais que a propria vida,
E se assim não fizera, fôra indigno.
«Eu te acho, meu Conde, tão menino
«Que receio…» — Ah!Não temas, não, querida;
A franceza nação será batida,
Este peito, que vês, é diamantino.
«Como é crivel que sejas tão valente?…»
Eu herdei o valor de avós, e paes,
Que essa virtude tem a illustre gente.
«Porém se as forças forem desiguaes?…»
Irra, Condessa!És muito impertinente!
Tornarei a fugir, que queres mais?

XXVI

Se quereis, bom Monarcha, ter soldados
Para compôr lustrosos regimentos,
Mandai desentulhar esses conventos
Em favor da perguiça edificados:
Nos Bernardes lambões, e asselvajados
Achareis mil guerreiros corpulentos:
Nos Vicentes, nos Neris, e nos Bentos
Outros tantos, não menos esforçados:
Tudo extingui, senhor: fiquem sómente
Os Franciscanos, Loios, e Torneiros,
Do Centimano asperrima semente:
Existam estes lobos carniceiros,
Para não arruinar inteiramente
Putas, pivias, cações, e alcoviteiros.

XXVII

Veiu Muley-Achmet marroquino
Com duros trigos entulhar Lisboa;
Pagava bem, não houve moça boa
Que não provasse o casso adamantino:
Passou a um seminario feminino,
Dos que mais bem providos se apregôa,
Onde a um frade bem fornida ilhôa
Dava d'esmola cada dia um pino:
Tinha o mouro fodido largamente,
E já basofiando com desdouro
Tractava a nação lusa d'impotente:
Entra o frade, e ao ouvil-o, como um touro
Passou tudo a caralho novamente,
E o triumpho acabou no cú do mouro.

(D.)

XXVIII

Uma noute o Scopezzi mui contente
(Depois de borrifar a sacra espada
Que traz da rubra fita pendurada
Com cuspo, e vinho, que vomita quente:)
Conversava co'a esposa em voz tremente
Sobre a grande ventura inesperada
De ser a sua Placida adorada
Por um Marquez tão rico, e tão potente;
A velha lhe replica: «Isso é verdade;
Em quanto moça fôr, nunca o dinheiro
Faltará n'esta casa em quantidade.
«Mas tu sempre és o tafulão primeiro;
Pois tendo cabrão sido n'outra edade,
És agora o maior alcoviteiro!»

(D.)

XXIX

Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cú de tanta alvura;
Mas ver cagar, comtudo, a formosura
Mette nojo á vontade mais gulosa!
Ella a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura:
Uma carta d'amores de alimpadura
Serviu áquella parte mal cheirosa:
Ora mandem á moça mais bonita
Um escripto d'amor, que lisonjeiro
Affectos move, corações incita;
Para o ir ver servir de reposteiro
Á porta, onde o fedor, e a trampa habita,
Do sombrio palacio do alcatreiro!

(D.)

XXX

Quando do gran Martinho a fatal Parca
O termo fez soar no seu chocalho,
Levou tres dias a passar caralho
Do medonho Charonte a negra barca:
Eis no terceiro dia o padre embarca,
E o velho, que a ninguem faz agasalho,
Em premio quiz só ter do seu trabalho
O gaudio de ver porra de tal marca:
Pegou-se ao cão trifauce a voz na goela
Ao ver de membro tal as dianteiras,
E Plutão a mulher pôz de cautela:
Porém Dido gritando ás companheiras:
«Agora temos porra, a ella, a ella,
«Que as horas do prazer voam ligeiras!»

(D.)

XXXI

Dizendo que a costura não dá nada,
Que não sabe servir quem foi senhora,
A impulsos da paixão fornicadora
Sobe d'alcoviteira a moça a escada:
Seus desejos lhe pinta a malfadada,
E a tabaquenta velha seductora
Diz-lhe: «Veiu, menina, em bella hora,
Que essas, que ahi tenho, já não ganham pada:»
Matricula-se aqui a tal pateta,
Em punhetas e fodas se industría,
Em quanto a mestra lhe não rifa a grêta:
Chega, por fim, o fornicario dia;
E em pouco a menina de muleta
Passêa do hospital na enfermaria.

(D.)

XXXII

Piolhos cría o cabello mais dourado;
Branca remella o olho mais vistoso;
Pelo nariz do rosto mais formoso
O monco se divisa pendurado:
Pela bôca do rosto mais corado
Halito sái, ás vezes bem ascoroso;
A mais nevada mão sempre é forçoso
Que de sua dona o cú tenha tocado:
Ao pé d'elle a melhor natura móra,
Que deitando no mez podre gordura,
Ferido mijo lança a qualquer hora:
Caga o cú mais alvo merda pura;
Pois se é isto o que tanto se namora,
Em ti mijo, em ti cago, oh formosura!

(D.)

XXXIII

Se o gran serralho do Sophi potente,
Ou do Sultão feroz, que rege a Thracia,
Mil Venus da Georgia, ou da Circassia
Nuas prestasse ao meu desejo ardente:
Se negros brutos, que parecem gente,
Ministros fossem de lasciva audacia,
Inda assim do ciume a pertinacia
No peito me nutríra ardor pungente:
Erraste em produzir-me, oh Natureza,
N'um paiz onde todos fodem tudo,
Onde leis não conhece a porra teza!
Cioso affecto, affecto carrancudo!
Zelar moças na Europa é ardua empresa;
Entre nós ser amante é ser cornudo.

(D.)

XXXIV

Não te crimino a ti, plebe insensata,
A van superstição não te crimino;
Foi natural, que o frade era ladino,
E experta em macaquices a beata:
Só crimino esse heróe de bola chata,
Que na eschola de Marte inda é menino,
E ao falso pastor, pastor sem tino,
Que tão mal das ovelhas cura, e tracta:
Item, crimino o respeitavel Cunha,
Que a frias petas credito não dera,
A ser philosopho, como se suppunha:
Coitado!Protestou com voz sincera
Fazer geral, contricta caramunha,
Porém ficou peor que d'antes era!

XXXV

Se tu visses, Josino, a minha amada
Havias de louvar o meu bom gosto;
Pois seu nevado, rubicundo rosto
Ás mais formosas não inveja nada:
Na sua bôca Venus faz morada;
Nos olhos tem Cupido as settas posto;
Nas mammas faz Lascivia o seu encosto,
N'ella, em fim, tudo encanta, tudo agrada:
Se a Asia visse cousa tão bonita
Talvez lhe levantasse algum pagode
A gente, que na foda se exercita!
Belleza mais completa haver não pode;
Pois mesmo o cono seu, quando palpita;
Parece estar dizendo: «Fode, fode!»

(D.)

XXXVI

Cante a guerra quem fôr arrenegado,
Que eu nem palavra gastarei com ella;
Minha Musa será sem par canella
Co'um felpudo coninho abrazeado:
Aqui descreverei como arreitado
N'um mar de bimbas navegando á vela,
Cheguei, propicio o vento, á doce, áquella
Enseada d'Amor, rei coroado:
Direi tambem os beijos susurrantes,
Os intrincados nós das linguas ternas,
E o aturado fungar de dous amantes:
Estas glorias serão na fama eternas;
Ás minhas cinzas me farão descantes
Femeos vindouros, alargando as pernas.

XXXVII

Fiado no fervor da mocidade,
Que me acenava com tezões chibantes,
Consumia da vida os meus instantes
Fodendo como um bode, ou como um frade:
Quantas pediram, mas em vão, piedade
Encavadas por mim balbuciantes!
Fincado a gordos sessos alvejantes
Que hemorroidas não fiz n'esta cidade!
Á força de brigar fiquei mammado:
Vista ao caralho meu, que de gaiteiro
Está sobre os colhões apatetado:
Oh Numen tutelar do mijadeiro!
Levar-te-hei, se tornar ao tezo estado,
Por offrenda espetado um parrameiro.

XXXVIII

Eu foder putas?..Nunca mais, caralho!
Has de jurar-m'o aqui, sobre estas Horas;
E vamos, vamos já!…Porém tu choras?
«Não senhor (me diz elle) eu não, não ralho:»
Batendo sobre as Horas como um malho,
«Juro (diz elle) só foder senhoras,
Das que abrem por amor as tentadoras
Pernas áquillo, que arde mais que o alho.»
Co'a força do jurar esfolheando
O sacro livro foi, e a ardente sede
O fez em mar de ranho ir soluçando....
Ah!que fizeste?..O ceo teus passos mede!
Anda, heretico filho miserando,
Levanta o dedo a Deus, perdão lhe pede!

XXXIX

«Ora deixe-me, então…faz-se creança?
Olhe que eu grito, pela mãe chamando!» —
Pois grite (então lhe digo, amarrotando
Saiote, que em baixal-o irada cança):
Na quente lucta lhe desgrenho a trança,
A anagoa lhe levanto, e fumegando
As estreitadas bimbas separando
Lhe arrimo o caralhão, que não se amança:
Tanto, a ser giria, não gritava a bella;
Que a cada grito se escorvava a porra,
Fazendo-lhe do cú saltante pella!
— Ha de pagar-me as mangações de borra;
Basta de cono, ponha o sesso á vela,
Que n'elle ir quero visitar Gomorrha.

XL

Pela rua da Rosa eu caminhava
Eram sete da noute, e a porra teza;
Eis puta, que indicava assás pobreza,
Co'um lencinho á janella me acenava:
Quaes conselhos?A porra fumegava;
«Hei de seguir a lei da natureza!»
Assim dizia, e effeituou-se a empresa;
Prepucio para traz a porta entrava:
Sem que saude a moça prazenteira
Se arrima com furor não visto á crica,
E a bella a molle-molle o cú peneira:
Ninguem me gabe o rebolar d'Annica;
Esta puta em foder excede a Freira,
Excede o pensamento, assombra a pica!

XLI

«Apre!Não mettas todo…Eu mais não posso…»
Assim Marcia formosa me dizia;
— Não sou barbaro (á moça eu respondia)
Brandamente verás como te cóço:
«Ai!por Deus, não…não mais, que é grande, e grosso!..»
Quem resistir ao seu falar podia!
Meigamente o coninho lhe batia;
Ella diz: «Ah meu bem!meu peito é vosso!»
O rebolar do cú (ah!)não te esqueça....
Como és bella, meu bem!(então lhe digo)
Ella em suspiros mil a ardencia expressa:
Por te unir faze muito ao meu embigo;
Assim, assim…menina, mais depressa!…
Eu me venho…ai Jesus!…vem-te comigo!

XLII

Vem cá, minha Maria, tão roliça,
Co'as bochechas da côr do meu caralho,
Que eu quero ver se os beiços embaralho
Co'esses teus, onde amor a ardencia atiça:
Que abrimentos de bôca!Tens perguiça?
Hospeda-me entre as pernas este malho,
Que eu te ponho já teza como um alho;
Ora chega-te a mim, leva esta piça....
Ora meche…que tal te sabe, amiga?
Então, foges c'o sesso?É forte historia!
Elle é bom de levar, não, não é viga.
«Eu grilo!» (diz a moça merencoria)
Pois grita, que espetada n'esta espiga
Com porraes salvas cantarei victoria.

XLIII

Dormia a somno solto a minha amada,
Quando eu pé ante pé no quarto entrava;
E ao ver a linda moça, que arreitava,
Sinto a porra de gosto alvoroçada:
Ora do rosto seu vejo a nevada
Pudibunda bochecha, que encantava;
Outr'hora nas mamminhas demorava
Soffrega, ardente vista embasbacada:
Porém vendo sair d'entre o vestido
Um lascivo pésinho torneado,
Bispo-lhe as pernas, e fiquei perdido:
Vai senão quando, o meu caralho amado
Bem como Enéas acordava Dido,
Salta-lhe ao pello, por seguir seu fado.

XLIV

Eram oito do dia; eis a creada
Me corre ao quarto, e diz: «Ahi vem menina
Em busca sua; faces de bonina,
Olhos, que quem os viu não quer mais nada.»
Eis me visto, eis me lavo, e esta engraçada
Fui ver in continenti; oh ceos!que mina!
Que breve pé!Que perna tão divina!
Que mamminhas!que rosto!Oh, que é tão dada!
A porra nos calções me dava urros;
Eis a levo ao meu leito, e ella rubente
Não podia soffrer da porra os murros:
«Ai!..ai!..(de quando em quando assim se sente)
Uma porra tamanha é dada aos burros,
Não é porra capaz de foder gente.»

XLV

Pela escadinha de um courão subindo
Parei na sala, onde não entra o pejo;
Chinelo aqui e ali suado vejo,
E o fato de cordel pendente, rindo:
Quando em miseria tanta reflectindo
Estava, me appareceu nympha do Tejo,
Roendo um fatacaz de pão com queijo,
E para mim n'um ai vem rebolindo:
Dá-me um grito a razão: — «Eia fujamos
Minha porra infeliz já d'este inferno…
Mas tu respingas?Tenho dicto, vamos…»
Eis a porra assim diz — «Com odio eterno
Eu, e os socios colhões em ti mijamos;
Para baixo do embigo eu só govérno.»

XLVI

Eram seis da manhan; eu acordava
Ao som de mão, que á porta me batia:
Ora vejamos quem será…dizia,
E assentado na cama me zangava.
Brando rugir de seda se escutava,
E sapato a ranger tambem se ouvia…
Salto fora da cama…Oh!que alegria
Não tive, olhando Armia, que arreitava!
Temendo venha alguem, a porta fecho;
Co'um chupão lhe saudei a rosea bôca,
E na rompente mamma alegre mecho:
O caralho estouvado o cono aboca;
Bate a gostosa greta o rubro queixo,
E a matinas de amor a porra toca.

XLVII

«Mas se o pae acordar!..(Marcia dizia
A mim, que á meia-noute a trombicava)
«Hoje não…(continúa, mas deixava
Levantar o saiote, e não queria!)
Sempre em pé a dizer: «Então, avia…»
Sesso á parede, a porra me aguentava:
Uma cousa notei, que me arreitava,
Era o calçado pé, que então rangia:
Vim-me, e assentado n'um degrau da escada,
Dando alimpa ao caralho, e mais á greta,
Nos preparámos para mais porrada:
Por variar nas mãos metti-lhe a teta;
Tosse o pae, foge a filha…Oh vida errada!
Lá me ficou em meio uma punheta!

XLVIII

Quando no estado natural vivia
Mettida pelo matto a especie humana,
Ai da gentil menina deshumana,
Que á força a greta virginal abria!
Entrou o estado social um dia;
Manda a lei que o irmão não foda a mana,
É crime até chuchar uma sacana,
E péza a excommunhão na sodomia:
Quanto, lascivos cães, sois mais ditosos!
Se na egreja gostais de uma cachorra,
Lá mesmo, ante o altar, fodeis gostosos:
Em quanto a linda moça, feita zorra,
Voltando a custo os olhos voluptuosos,
Põe no altar a vista, a idéa em porra.

XLIX

Levanta Alzira os olhos pudibunda
Para ver onde a mão lhe conduzia;
Vendo que n'ella a porra lhe mettia
Fez-se mais do que o nacar rubicunda:
Tóco o pentelho seu, tóco a rotunda
Lisa bimba, onde Amor seu throno erguia;
Entretanto em desejos ella ardia,
Brando liquor o passaro lhe inunda:
C'o dedo a greta sua lhe coçava;
Ella, machinalmente a mão movendo,
Docemente o caralho me embalava:
«Mais depressa» — lhe digo então morrendo,
Em quanto ella signaes do mesmo dava;
Mistica pivia assim fômos comendo.

L

Uma empada de gallico á janella,
Fazendo meia, alinhavando trapos,
Em quanto a guerra faz tudo em farrapos,
Pondo o honrado a pedir, e a virgem bella!
Vai a trombuda, sordida michela
Fazendo guerra a marujaes marsapos,
E sem que d'estes mil lhe façam papos,
C'o sesso tambem dá ás porras tréla:
Tudo em metal por dous canaes ajunta;
Recrutas nunca teme, e do Castello
Se ri, que aos belleguins as mãos lhes unta:
Nas publicas funcções vai dar-se ao prelo;
Minh'alma agora, meu leitor, pergunta
Se o ser puta não é officio bello?

LI

Com que magoa o não digo!Eu nem te vejo,
Meu caralho infeliz!Tu, que algum dia
Na gaiteira amorosa filistria
Foste o regalo do meu patrio Tejo!
Sem te importar o feminino pejo,
Traz a mimosa virgem, que fugia,
Fincado á terna, afadigada Armia,
Lhe pespegavas no coninho um beijo:
Hoje, canal de fétida remella,
O mysantropo do paiz das bimbas,
Apenas olhas candida donzella!
Deitado dos colhões sobre as tarimbas,
Só co'a memoria em feminil canella
Ás vezes pivia casual cachimbas.

LII

Que eu não possa ajuntar como o Quintella
É cousa, que me afflige o pensamento;
Desinquieta a porra quer sustento,
E a pivia tracta já de bagatella:
Se n'outro tempo houve alguma bella,
Que a amor só désse o cono pennugento,
Isso foi, já não é; que o mais sebento
Cagaçal quer durazia caravella.
Perdem saude, bolsa, e economia;
Nunca mais me verão meu membro roto;
Esta a minha porral philosophia.
Putas, adeus!Não sou vosso devoto;
Co'um sesso enganarei a phantasia,
N'uma escada enrabando um bom garoto.

MISCELANEA.


DECIMAS.

A UM TABELLIÃO VELHO, QUE CASOU COM MOÇA NOVA.

I
Um tabellião caduco,
Com mulher moça casado,
Vai portar no seu estado
Por fé o signal de cuco:
Como já não deita succo
Por mais que puche os atilhos,
Não lhe hão de faltar casquilhos
Para a moça amantes novos,
Que lhe vão galando os ovos,
E elle vá creando os filhos.
II
Elle diz que assim o quer;
Mas de raiva dará pulos,
Vendo que são actos nullos
Os actos que elle fizer:
Sem ter direito á mulher
Que será d'este demonio?
Logo então qualquer bolonio
Lhe desmancha o casamento,
Porque não tem instrumento
Com que prove o matrimonio.

III
Tenha embhora muita renda,
Seja lavrador morgado,
Mas para homem casado
Sempre tem pouca fazenda.
É provavel se arrependa
A pobre da rapariga,
Que se agatanhe e maldiga,
Quando na noute da boda
Correr a ceara toda,
E não encontrar espiga.
IV
Inda que não tome a mona
Por ter fibra já cansada,
Mal pode assistir á entrada
De Carlos em Barcelona:
Que o leve ao porto de Ancona
Não terá vento ponteiro,
E andando sempre em cruzeiro
Que fará este homem raro?
Ser como os cães, que teem faro;
Conhecel-o pelo cheiro.

V
Por mais que á moça infeliz
Faça protestos de amor,
Sempre se quer fiador
D'homem sem bens de raiz;
Só crerá no que elle diz
Se escriptura lhe fizer;
E elle pode-lhe fazer
Uma duzia, e uma centena;
Mas nunca molhando a penna
No tinteiro da mulher.
VI
São tristes da moça os fados,
Pois lhe não consentem que ella
Avance pela Arreitella
Té Pica de Regalados:
Logo entre estes dous casados
Se trava renhido pleito,
Mas se por aggravo o feito
Elle leva á Relação,
Lá ninguem lhe dá razão,
Sem que mostre o direito


O inferno do Ciume.

MOTTE.
O inferno do Ciume.
Glosas.
I
Esse abysmo, esse Orco eterno
Não é filho da razão;
Os pavores da illusão
É que pariram o inferno:
Pelo sizo me governo,
Que louco e falso o presume;
Mas, se não creio esse lume,
Nem esse invento maldicto,
Por exp'riencia acredito
O inferno do Ciume.
II
Em vão prégador rançoso
Lá do pulpito vozêa,
Quando a triste imagem fêa
Traça do inferno horroroso:
É systema fabuloso,
Que á razão embota o gume;
Não, não ha Tartareo lume,
Que devore a humanidade:
Sabeis vós o que é verdade?
O inferno do Ciume.


Venha cá, sô Boticario
Venha cá, sô Boticario,
Vossê sabe em que se mette,
De tão rafado cadete
Sendo terceiro, está vario?
Advirta que é necessario
Reportar acções insanas;
Estude em fazer tisanas,
Algum purgante ligeiro,
Mas não seja alcoviteiro
Muito menos de sacanas.

P'ra que viva a cosinheira
P'ra que viva a cosinheira,
Que tão boas papas fez!
Confesso por esta vez
Que bem me sabe, e me cheira:
O Papa em sua cadeira
Vestido de estola e capa,
Não faz cousa tão guapa:
A cosinheira faz mais;
O Papa faz Cardeaes,
A cosinheira faz papas


Dialogo entre o Poeta, e o Tejo.

Poeta.

Tejo, que tens, estás quedo?
Não banhas hoje esta praia?
De que o teu valor desmaia?

Tejo.

Eu t'o digo, mas segredo:
Confesso que tenho medo
Do teu ranchinho infernal.

Poeta.

O teu susto é natural,
Parecem tres furiasinhas;
Mas comtudo são mansinhas,
Não mordem, nem fazem mal.

São uns cornos mui bem feitos

São uns cornos mui bem feitos,
Uns cornos mui delicados,
São cornos, que torneados
Se podem trazer aos peitos:
Cornos que sobem direitos,
Pela sua varonia,
E sem mais chronologia
Tem gravados na armadura
Os timbres da fidalguia.


IMPROVISO.

Á meia noute
Saíu de um cano
Cheio de merda
Crispiniano.
Eis que da ronda
Tropel insano
Divisa ao longe
Crispiniano.
Capuz o cobre;
«És franciscano?»
— Sou (lhe responde)
«Crispiniano.»
Chega o Alcaide,
Dá-lhe um abano;
Sáe da gravata
Crispiniano..


ELEGIA.
Á MORTE DE UMA FAMOSA ALCOVITEIRA.

Genio só dado a sordidas torpezas,
Que usas comprar na immunda Cotovia
Chochos agrados de venaes bellezas:
Solto o cabello, as carnes arripia
Na morte d'esta illustre recoveira,
E inspira-me tristissima elegia.
Honrada, e a mais sabida alcoviteira,
A ti consagro este cypreste umbroso,
Com que te enramo a esqualida caveira;
Em quanto pelo rio pantanoso
A ouvir te leva o pallido Charonte
Severas leis de Minos rigoroso.
Alçando para o ar a crespa fronte
Os ouvidos estende ás vozes minhas,
Quando no mundo os teus louvores conte.
Vós, moças do Bairro-Alto e Fontainhas,
Vós testemunhas sois da grande falta
Que chorando contais entre as visinhas.
Ai!Que ha de ser de vós, gente de malta!
Eu vejo em vossas faces o desgosto,
E a dor, que os corações vos sobresalta!
Morreu a vossa mãe, o vosso encosto,
Que vos ganhava o pão honradamente,
Inda que com suor do vosso rosto!
Não mais vereis entre a mundana gente
D'aquella honrada bôca o grato riso,
Que descubria um solitario dente!
Morreu a discrição, foi-se o juizo,
Vós o sabeis: melhor que esta viuva
Ninguem fez um recado de improviso.
Embrulhada na capa ao vento, á chuva,
Ella comprar-vos ia caridosa
As ginjas, os melões, a pêra, a uva:
Vendo qualquer de vós triste e chorosa,
Ella desassocega, ella trabalha
Por livrar-vos da pena lamentosa:
Conhecia os tafues já pela malha,
Ella vos apartava dos sovinas,
Para aquelles que dão maior medalha:
Chupista de dinheiro e de tolinas,
Por todas repartindo esta pendanga,
Ella era o vosso bem, e as vossas minas.
C'os homens depravados tinha zanga,
Gostava da modestia, e da virtude
Dos que dão a beijar cordão e manga.
Se a mandavam beber, era um almude,
E ás vezes não parava até que a bôca
Se lhe punha mais grossa do que grude.
A que a buscava, e que não era louca,
A recolhia em casa, e pela mamma
Apenas lhe levava cousa pouca.
Sempre de todas dava boa fama,
De freguezes lhe armava quantidade,
Té as pôr sobre si com casa e cama.
Nos ganhos não levou nunca metade;
Qualquer cousa aceitava, porque pensa
Que o mais era faltar á charidade.
Dotada foi de charidade immensa;
Sempre ao lado se achou da sua amiga
No tempo da saude, e da doença.
Aquella moça gordalhuda o diga;
Ella pode pintar mais vivos quadros
D'esta estimavel, d'esta amante liga.
No tempo em que ella andou vagando os adros
Mil vezes lhe curou c'os seus inventos
Crueis camadas de piolhos ladros.
Ella mesma c'os dedos fedorentos
Cheia de amor, de charidade cheia,
Lhe ministrava os fetidos unguentos.
Á frouxa luz da tremula candêa,
Que tem no chammejar seus intervalos,
As chagas cura, a porquidade aceia:
De alvissima pomada untando os callos,
As partes amacîa, que mordêra
O dente de ardentissimos cavallos.
Jámais no seu trajar luxo tivera,
Nem na sua cabeça houve polvilhos,
Depois que seu marido lhe morrêra.
Foi a primeira em dar ensino aos filhos;
Procurai este trilho verdadeiro
Vós, oh paes, que seguis diff'rentes trilhos.
Uma filha, que Deus lhe deu primeiro,
Arrimada a deixou com loja aberta;
Teve um filho, que foi alcoviteiro.
Eia, paes de familias, olho álerta;
Se quereis vossos filhos empregados,
Tendes seculo bom, e é móca certa.
Dispoz da sua terça, que tirados
Os gastos funeraes, que lhe fariam
Os devotos irmãos, gatos-pingados,
Os seus testamenteiros comprariam
C'o resto uma barraca, em que decente
Uma casa d'alcouce erigiriam:
Que haveriam noviças e regente;
Proveu logo este cargo na Coveira,
Por ser mais respeitosa, e mais prudente:
A Santarena fica thesoureira;
Chamou para escrivan a Ignacia China,
Felicia de Chaté madre rodeira.
Ninguem melhor os seus vintens destina,
Porque para solteiras e casadas
Vejam que seminario de doctrina!
Entre as ultimas vozes já truncadas,
Chamando a filha com afago, e rogo
Ficaram entre os braços enlaçadas.
«A mecha (lhe diz ella) junto ao fogo
«É facil de pegar…» Ia adiante,
Porém não disse mais, que morreu logo.
De pallidez cobriu-se-lhe o semblante,
Ouviram-se ao redor gritos immensos
Da turba feminil, pouco constante.
Ternos suspiros pelos ares densos
Vão abraçar o seu cadaver frio,
Cobrem-se os olhos de engomados lenços.
Cortou a Parca d'esta vida o fio,
O esp'rito nú, da carne desatado,
Lá vai cruzando o lutulento rio.
Oh dia com razão amargurado!
Em quanto nos lembrar tão triste imagem,
Sempre serás dos bons tafues chorado.
Cobrir tu viste com pesada lagem
Aquella que nos fez o beneficio
De nos dar uma casa d'estalagem.
Ninguem soube melhor do seu officio;
Nem se achára tão destra alcoviteira
Sómente com trinta annos d'exercicio.
E vós, mulheres, que gostais d'asneira,
Honrai as suas cinzas, os seus ossos,
E respeitai-lhe a funebre caveira.
A morte dá nos velhos e nos moços;
Ninguem se escapa da carranca feia
Depois de preso em seus calabres grossos.
Conservai pois esta fatal idéa,
E rodeando o corpo desditoso,
Accendei cada qual uma candêa,
E fazei-lhe um sepulchro apparatoso.

NOTAS.

Pag.5 — A Ribeirada.

Este poema parece ter sido um dos primeiros ensaios da musa de Bocage. Inducções fundadas em boa razão nos levam a conjecturar que a composição d'elle data de tempos anteriores ao da partida do poeta para Gôa, isto é, do anno 1785. O transumpto pelo qual se fez a presente edição, é sem duvida preferivel por sua correcção ao de que se serviu quem ha já bastantes annos fez imprimir em Paris o referido poema, juntamente com outras poesias do mesmo genero em um folheto de oitavo grande. Posto que sobejem fundamentos para julgar reaes as personagens, e passados em verdade os factos, que despertaram a vêa satyrica do poeta, suscitando-lhe a idéa de tal composição, não é comtudo possivel entrar em algumas particularidades a esse respeito: e até julgâmos pouco provavel que, mesmo em Setubal, se conserva ainda a memoria das façanhas do azevichado heróe, que mereceu obter a immortalidade nos versos do Bardo do Sado

Pag.19 — A Manteigui.

Resumindo aqui as indicações constantes de uma nota, que encontrámos appensa a um antigo manuscripto d'este poema, sem todavia nos responsabilisarmos por sua veracidade, diremos que a protagonista D.nna Jacques Manteigui, natural de Damão, vivia na cidade de Gôa em companhia de um marido de boa feição (cujo nome e circumstancias não vieram ao nosso conhecimento). Esta dama tornava-se notavel não menos pela sua belleza que por sua desenvoltura e ambição; e sabia fazer dos seus encantos um trafico por extremo lucrativo. D. Frederico Guilherme de Sousa, então Governador geral da India, apaixonando-se por ella, a tomara por sua amiga; porém isso não obstava a que ella não lhe fizesse repetidas infidelidades. Entre outras era accusada pela voz publica de entreter luxurioso commercio com um negro, seu escravo, moço bem fornido, ao qual dava de graça o mesmo que o Governador só podia comprar por alto preço! — Disse-se que na presente composição entrara por muito a vingança pessoal de Bocage, despeitado porque a dama se recusara abertamente a corresponder-lhe, pleiteando elle com ancia os seus favores. O que parece fóra de duvida é que d'aqui lhe proveiu em parte a sua desgraça; pois que chegando esta satyra ás mãos de D. Frederico, este se julgou altamente offendido na pessoa da sua bella, e irritado contra o poeta o mandou incontinente deportado para Macau, d'onde a muito custo pôde obter licença e meios de transportar-se a Lisboa.

De poema «Manteigui» temos visto tres ou quatro edições diversas; todas feitas, ao que parece, em Lisboa.Não nos ligámos a alguma em particular, mas aproveitámos de todas as variantes que offereciam visos de mais correctas, confrontando-as sempre com os manuscriptos que possuiamos, e preferindo em todos os casos o que se nos afigurava por mais exacto, e conforme ao texto original.

Pag.29 — A Empreza Nocturna.

Esta peça, mais conhecida sob a denominação de «Noute de Inverno» e já por vezes impressa, tem sido quasi universalmente attribuida a Bocage; pareceu portanto que não devia omittir-se na presente edição.Devemos porém declarar aos leitores, que segundo o testemunho de pessoas mui auctorisadas, ella não é obra do nosso poeta, e sim do seu contemporaneo e amigo Sebastião Xavier Botelho.De outras, que estão em caso analogo, e que similhantemente vão aqui incorporadas, iremos dando razão nos logares competentes.

Pag.35 — Epistola a Marilia.

Todas as pessoas lidas na historia de Bocage sabem que esta epistola, e o soneto que damos a pag.111 do presente volume, lhe serviram principalmente de corpo de delicto, quando, perseguido por ordem da Intendencia geral da policia, foi a final preso em 10 de agosto de 1797; sendo então transportado de bordo da embarcação onde se refugiara para os segredos da cadêa do Limoeiro, e d'ahi passados alguns mezes removido para os carceres da Inquisição.(Veja-se o «Estudo Biographico» que vem no tomo I.das Poesias de Bocage, edição de 1853, a pag.XL e seguintes.)

Antonio Maria do Couto nas «Memorias» que escreveu ácerca da vida do poeta, affirma em tom decisivo — que a Epistola a Marilia fora feita por occasião de ser seu mestre um frade (graciano) que a requestava: assim será; mas parece-nos, lendo esta composição, que o poeta exigia da sua bella mais alguma cousa do que pol-a de aviso contra as seducções do frade.

Quando começaram a divulgar-se algumas copias d'esta epistola, varios engenhos devotos e de animo timorato, escandalisados justamente da erronea philosophia do auctor, e muito mais do modo impio e libertino com que elle dogmatisara, estabelecendo e propalando principios tão anti-religiosos, e anti-sociaes, entenderam que era do seu dever opporem-se a taes doctrinas: para que o antidoto seguisse de perto o veneno, julgaram por melhor servir-se das mesmas armas, empregando egualmente a linguagem das musas, e ligando á força dos raciocinios as graças da metrificação. Das «Refutações» que n'este sentido appareceram conservâmos duas em nosso poder; e como as suppomos desconhecidas para o commum dos leitores, ahi lh'as apresentamos, desejando que n'ellas encontrem um correctivo seguro contra as falsas e seductoras maximas da epistola bocagiana.

A primeira é obra de Manuel Thomás Pinheiro de Aragão, admirador e amigo de Bocage, falecido ha poucos annos, e que por muitos exerceu em Lisboa com bons creditos o magisterio na instrucção da mocidade.Quanto á segunda não podémos, apesar de toda a diligencia, conhecer até agora o nome do seu auctor.

ANTI-PAVOROSA — PARODIA CHRISTAN.

I
Fatal meditação da Eternidade,
Dos vivos illusão, vida dos mortos;
Ou gloria para sempre, ou sempre inferno;
De desordens, de crimes oppressora,
Não forjada por despotas, por bonzos,
Mas sim por divinal credulidade;
Dogma infallivel, que o prazer arreigas
Quando a sizania c'o remorso arrancas;
Dogma infallivel, favoravel crença,
Digno premio de peitos innocentes,
Das delicias gosando, que mal fingem
Impavidos á furia Centimanos,
Que vomitando estão perpetua chamma;
Superiores motejam seu engano
No limiar das Parcas, eis o quadro
Que observa em vivas côres a ignorancia,
Egualmente a sciencia em vivas côres;
Inda que eu por sciente só conheço
A quem teme os castigos no ameaço,
A quem teme tornar um páe tyranno,
A quem lamenta inuteis suas preces,
Por mais que em giro ao throno elle as espalhe.
Teme o sabio que um Deus irado o fira,
E penitente vae, supplíca a venia
Ao dispenseiro seu, nobre, e sagrado.
Que ora as graças lhe abre, ora as ferrolha;
As graças, que co'as leis da natureza
Se ligam sempre, eternas, necessarias,
E só quando a vontade as torna em crimes
Cruel desunião n'ellas fomenta;
Por vêl-a rebellada lhe fulmina
Prisões suaves no jejum, cilicio,
Que n'um geral conselho só lhe arbitra;
Humilde, pode resarcir-se a benção;
Suberba, porque quer desenfadar-se
No jugo, que remata nas delicias,
Recáe n'outro maior, que a morte vende.
II
E inda dizem que Deus é vingativo,
Se com razão sacode o raio ardente?…
Antes te louvarei, por que não déste
O justo premio a muitos, que arrojando
Contra si tremendissima sentença
Julgam pela grandeza propria o crime,
E não querem fazer seu peito escravo
No castigo, que affirmam ser-lhes duro!
Será eterna a pena n'esses peitos,
Que d'um Deus se não movem ao interesse,
E o desaggravo indomito attribuem
Menos ao Sempiterno, do que a todos
Temendo perdurar como a mesma alma,
Verdades proferidas nos altares,
Onde ha satisfação, e não cruezas:
Vemos ali ministro venerando,
Longe de renovar suppostos odios,
Defendendo nos crimes a innocencia,
Primeiro recusando alto dominio,
C'o peso superior por tempo incita:
Eil-o na honra altissima abrasado,
Com sangue apaga inundações de fogo;
Testemunhas do zelo a voz, e a espuma;
Mandado por um Deus, tão bom como elle,
Pede ao Senhor não multiplique exemplos
Com que já se consterna a phantasia!
Victima impura de outra vez no povo,
Livremente seu povo entrega á morte:
Defuncto o servo, que esfriava os raios,
Punia sem limite o Omnipotente;
Inda lembra ao Sinai tremer-lhe a terra,
Quando Adonai lhe intima seus decretos.
Ah!Moysés, que não podes ser astuto,
Contra a publica voz, que assim troveja!
O teu povo confessa os seus furores,
Quando entregue de um Deus á justa raiva
Sua clemencia, succumbia á tua:
Na inteireza, que tens, creio; confio
Que a tocha da verdade te precede,
Para mais deslumbrar aos que te offendem:
Que se o ferro fatal já não se ensopa
No resto d'estas animadas cinzas,
Da lei da graça os divinaes incensos
Por disfarçar a pena tornam surdos
Á voz interna os que não crêem no inferno:
Tremenda lei, se a pena lhe retardas!
Mas se lh'a appressa executor propheta
Lhe acalma as iras, porque vae, diffunde
O pavoroso medo nos sequazes
Do idolatra e espantoso fanatismo.
Convocam-se os levitas, os quaes matam
Aos cumplices de tal atrocidade:
Comprimida gemeu a Natureza;
Por um Deus os consortes, páes, e filhos
Com seu sangue as espadas, vestes tingem:
Recobra o páe quem faz o parricidio,
E aos campos, que de victimas se alastram
Chovem mil novas graças como em rios.
Acalmada a justiça a teus clamores,
Por honra do teu Deus, servo sedento,
Co'um só estrago evitas mil estragos,
Ferrando a todos do leão as garras.
E tu, impio, as blasphemias que derramas
Escusa, lendo a historia dos tyrannos.
Os de Israel não foram que este exemplo
Tomaram por fazer pesado o jugo;
Por uma vil paixão, cruel, não manches
Os direitos de um Ser eterno, augusto.
De um Deus real Moysés real valido
Deu cultos á verdade, corte ao genio,
E codigo de leis mais necessario
Deu a todos, que a bem de si o imitam,
Prova fiel de que um Deus senhor existe.
III
O quadro original eis, oh Marilia,
Em que a verdade ha tempos anda envolta,
Sem que pinceis deslustrem d'esses tempos
Os que fieis copiam pinceis nossos.
Tradição verdadeira desarreiga
Toda a suspeita de fallaz doctrina,
Quando entre mil e mil preoccupados
Nos podêmos suppôr de horridas sombras,
Formando povo, juram que a piedade
Existe em Deus, inda quando te flagella.
Não julga o impio assim, que todo é fogo,
Que o Deus tem nas paixões, e vive d'ellas;
Forma um Nume, que ao seu dictame ajusta,
E por elle regula a infeliz vida.
Simulacro liberrimo é suave,
Dirige a seu exemplo as acções todas,
E em tanto que se escuta a natureza,
Vae fugindo a razão, e céga a muitos.
Ambas, sendo guiadas, não differem,
Dos factos aos reflexos só conduzem;
E a mesma, que soccorre ao indigente,
Que alenta, que consola o triste afflicto,
A mesma em si reflecte consternada
Quando algum seu alumno entrega os pulsos
Voluntario de amor ás vís algemas:
Amor, que uma inspirou, ambas approvam,
E ambas murmuram aliás da insania
Que os humanos colloca a par dos brutos,
Queda, vicio total, que os desacorda,
Do qual preoccupados, uns aos outros
Invenciveis motivam feros males.
Ah!não sejam, Marilia, nossas mentes
Tomadas do dictame em que jaz crime!
Do remorso a lembrança evite a culpa;
Um Deus em nosso bem benigno existe,
Que te pode escudar o pensamento
Ao golpe do que fragil se arrepende.
Não são aos actos intenções oppostas,
Antes estas áquelles dando exemplos
Na contemplação propria culpam a alma.
IV
Supplemento d'acção faz doce encanto
O que antes era objecto de terrores,
E convertido n'um final interesse
Emprega a bem dos crentes a astucia:
Oxalá, doce amada, que no inferno
Não padecesse o pensamento angustias
Do crime o galardão, merecido premio!
Que eu de amor aos fatidicos embustes
Me entregára por ti, se o não houvera!
Além de contemplar-te deusa bella,
Novo altar te formára em minha mente.
Mas ah!que a minha lei, se rigorosa
Mostra um semblante no ext'rior severo.
Seus nobres fins a tornam jugo amante.
Concedendo-me em doce ajuste sacro
A posse eterna do que pinta a idéa!
Em teus dotes mais ricos do que o mundo
Tu bem podes gravar pacto solemne,
Que é desejado mais quando te esquivas;
Porque o pejo innocente foge ao laço
Que inculcando te estou, te estou pedindo.
Sacra alliança pedem teus direitos
Por belleza e traição só extorquidos.
Approva ternamente o jus paterno
A chamma, quando pura se affoguêa.
Então desfructarás da liberdade,
Quando maior sentires este jugo[1]

Quando quer sustentar que amor com guardas
Influencias não pode ter propicias,
Emmudeça tambem o louco Elmano,
Que ignora do seu Deus os sanctos lares,
E quer solemnisar a união de almas
Dando por testemunhas venerandas
As trevas, apezar que nada sejam:
Deixado o sacerdote, ampliado o templo,
Celebra o matrimonio em toda a terra:
Quem faz caso porém de seus transportes?
Seu coração ao menos desafogue
Em proclamar, mas por que não incita
O vedado prazer de horrivel nome.
E querendo render nossas vontades
Co'as falsas persuasões, que mal recebem,
Na religião pretende amortecer-te,
Porque possa appetite aviventar-te.
Ah!que não se propõe ser teu amante
Quem quer na confusão de mil suspiros
Tão infeliz fazer-te quanto é elle!
Entretanto, Marilia, não te prives
D'outras estimações de quem te adora;
Na minha lei tu podes ser amada,
E amares, se á razão não fores surda.
Meu coração de ver-te enfeitiçado
Emprega provas mil suas, e minhas,
Porque ames, sem deixar de ser ditosa.
Deve a religião guiar teu gosto,
A lembrança final desterre o crime:
Que apezar do vicioso, que pregôa,
Existem céos, existe o negro inferno;
Laurea-se n'aquelles a virtude,
Arderá n'este para sempre o vicio.

Até aqui M.P.Thomaz Pinheiro d'Aragão.Veja-se agora a Refutação anonyma.

EPISTOLA AO AUCTOR DA «PAVOROSA»

Sacrilego impostor, que renovando
Os antigos delirios da ignorancia,
Mil vezes felizmente refutados,
Pretendes illudir a innocencia,
Fabricando um systema monstruoso,
Incrivel mesmo aos olhos da impiedade:
Quando a mão temeraria assim levantas
Contra o dogma fatal da eternidade,
Aviltando o teu ser, dize, profano,
Não te grita a razão — Suspende o braço?
Esse Deus, que confessas amoroso,
Deus de paz, pae dos homens, não flagello,
Como esses attributos desempenha
Com frouxa indifferença submergindo
No embrião do nada aquelles entes
Em que quiz esculpir a sua imagem?
Onde estará o amor, onde a ternura
D'esse Ente nosso pae?Em ter creado
De motu proprio uns miseraveis entes,
Que depois de passarem opprimidos
Sobre este globo cheio de trabalhos,
Devem ser outra vez depois da morte
Reduzidos ao nada?Dize, infame,
O que vale a virtude, essa virtude
Á custa de mil lagrimas comprada,
Se a alma não passa além da sepultura,
Onde só pode achar a recompensa?
Para que o feio vicio é condemnado,
Que os sentidos encanta e lisonjêa?
Se da nossa existencia é o sepulchro
O novissimo termo, é impiedade
Contrastar o appetite, e devem todos
Ás avidas paixões largar as redeas,
Pois mais felicidade não se espera.
Réo de taes sentimentos, e dos crimes
Que são d'elles precisas consequencias,
Attreves-te a chamar sonho, e chiméra
Esse logar terrivel, que desejas
Não existisse para teu flagello!
Dogma fatal, mas dogma necessario,
Cuja existencia só negar se attreve
Quem pondo-se ao nivel dos mesmos brutos
A razão, como tu, tem degradado!
Dize, infeliz: se o homem virtuoso
Vês sem estimação, sem recompensa,
Luctando co'a desgraça, em dura guerra
Com as suas paixões continuamente,
Se o vês dos orgulhosos opprimido,
Da miseria arrastando as vís cadêas,
E os flagellos soffrendo da injustiça,
Dirás que o justo Deus adormecido
Lhe não reserva digna recompensa
De o chamar ao seu seio, repartindo
Com elle os dons da doce eternidade?
Se o impio vês, pizando impunemente
As sanctas leis aos pés, e da ventura
Os favores gosar, se o vês honrado,
E talvez recebendo inda favores
Por opprimir a candida virtude
Dos que gemem debaixo do seu throno;
Se leis não pondo ao avido appetite,
Gosa a satisfação, que tanto prezas,
Dirás que o mesmo Deus deixa impunida
Por frouxidão a sua iniquidade,
E que lhe não destina calabouços
Onde a pena receba de seus crimes?
O estado feliz das almas justas,
Nem de Deus fora digno, nem perfeito,
Se sendo limitado a algum espaço
Não se estendesse a toda a eternidade:
Pois que durando n'ella essa virtude
Porque alcançaram esse dom supremo
É conforme á justiça que em Deus seja
O premio assim tambem continuado:
Pelos mesmos principios são eternos
Os castigos do impio: um juiz justo
Não pode perdoar um crime grave,
Se d'elle o aggressor não se arrepende.
Nos precitos ha sempre pertinacia,
E por isso serão eternamente
Da justiça divina castigados.
Aos sanctos livros…porém não profanes
Co'a impia mão as paginas sagradas,
Que estas tristes verdades nos relevam;
Só chegar deve a este sanctuario
Quem cheio de temor, e de respeito
As palavras adora, que elle encerra.
Para te confundir, a outras fontes
Mais dignas de teus vís impuros labios.
Por tua confusão quero guiar-te,
Porque vejas que o cego gentilismo
Falto das luzes sanctas do evangelho,
Por entre as grossas trevas da ignorancia
O dogma conheceu, que tu condemnas:
Ouve Platão, que manda os assassinos
Para o Tartaro negro, e tenebroso,
Onde diz que os tormentos são eternos.
De Sycione ao philosopho pergunta
Quem lhe ensinou que havia dous logares
Para o premio e castigo além da morte?
Ouve Plutarco, que esta mesma crença
Com a maior clareza te annuncia:
Lê finalmente gregos e romanos,
Egypcios e chaldeos, verás em todos
Este logar ao vivo retratado:
Verás gemer Sisyphos carregados
C'o peso rude de infernaes penedos;
Promethêos opprimidos de cadêas,
Ticios de abutres feros devorados,
Tantalos, e outros mil, que submergidos
No abrasado barathro nos pintam:
São fabulas, eu sei; mas esta idéa
Posto que com ficções desfigurada
Só de uma tradição a mais amiga
Podia deduzir a sua origem.
Escravo das paixões, a que te entregas,
Pretendes, temerario, collocal-as
Par a par da virtude, blasphemando
De quem por torpes vicios as condemna?
Aprende a defendel-as, ignorante;
Verás que da razão sendo inimigas
Não se podem livrar de ser culpaveis.
Perdendo a graça, dize, fementido,
Qual é o meio de revindical-a?
Duvîdas de que o summo sacerdote
Para estes infelizes naufragantes
Da penitencia não deixou a taboa?
Duvidarás que foi aos sacerdotes
A quem deu o poder illimitado
De atar e desatar os criminosos?
Se não duvidas, deves confessar-me
Que antes de proferirem a sentença
Devem primeiro conhecer a culpa.
Ajoelha, profano, mentecapto,
Ante este tribunal, de que escarneces,
Fonte de graça, que te fugiu d'alma.
Respeita nos ministros, que a despendem,
Não as suas fraquezas, que são homens,
Mas aquelle de quem são commissarios.
Não é Deus oppressor, não vingativo,
Por vibrar com a dextra o raio ardente
Contra os que seguem, como tu, com furia
Da carne os criminosos movimentos,
Que sua lei, tua razão condemnam.
Dizes que a punição excede o crime;
Blasphemo, que tu és!Pesa, se podes
Da offensa a infinita gravidade,
E verás que o castigo não excede.
Apostata infeliz, como te atreves
A tractar de tyranno o Omnipotente,
O Deus, que no Sinay envolto em gloria
Sanctas leis d'Israel dictou ao povo?
Achas indigno d'ellas o exterminio
D'esses torpes idolatras, mil vezes
Ingratos de seu Deus aos beneficios?
Arbitro absoluto dos viventes,
Não pode, prescindindo inda da culpa,
As vidas acabar, que lhe pertencem?
E conclues d'aqui, que o seu ministro
Moysés incomparavel, foi um monstro
De furor, impostura, e fanatismo?
Hallucinado monstro, onde bebeste
Para tua desgraça tal doctrina?
Podia um impostor fender as aguas
Com a força enganosa dos prestigios,
Fazendo pelo leito do mar-Roxo
Caminho só aos peixes conhecido?
Poderia de um arido rochedo
Só com o leve toque de uma vara
Fazer sair uma abundante fonte
Para o povo com sede fatigado?
Seria a sua astucia só bastante
Para outros mil prodigios d'esta ordem,
Em que de Pharaoth os mesmos magos
Confessaram andar de Deus o dedo?
Vae ler sem prevenção os seus escriptos,
Que são retratos os mais vivos d'alma,
N'elles descobrirás quanto é diverso
Aquelle original da negra copia
Que desenhou a tua mão indigna
Por fascinar os olhos da innocencia.
Lê nos mesmos pagãos os elogios
Que soube merecer-lhe o seu caracter,
Já que da sancta Egreja os testemunhos
Indigno desertor assim desprezas.
Para enganar a credula innocencia,
Que seduzir pretendes insensato,
Confundes o amor que Deus ordena,
Com aquella paixão, aquella insania,
Que arrasta os homens ao nivel dos brutos?
Que idéa, dize, tens da Divindade?
Confessas que é delicto aos similhantes
Traçar damnos crueis, injustos males,
E pretendes sem culpa assassinar-lhe
A virtude, roubando-lhe a innocencia?
Indigno, inconsequente, mentecapto,
Das luzes da razão abandonado,
Que dogmatisar queres vãos delirios
Uns a outros oppostos, e que offendem
Natureza, Razão, e Divindade;
Degradas o teu ser, não consentindo
Que haja além do sepulchro Eternidade.
Aviltas a Razão, suppondo-a digna
De approvar teu delirio extravagante;
A Divindade offendes, quando a pintas
Com attributos, que lhe são contrarios.
Esconde a face, e nunca as claras luzes
Vejas do céo, cuja existencia negas;
Sepultado nas trevas da ignorancia,
A que te guiam voluntarios erros,
Costuma-te aos horrores d'esse abysmo,
Em que, apezar de o teres por chimera,
Confessarás um dia, mas já tarde,
Não ser uma illusão a Eternidade.